Zeca Azevedo: Roberto Carlos me faz chorar
“Que cafonice”, pensou o metido a chique aí do outro lado. Que seja. Conheço muita gente que filtra a música pelo intelecto, que a reduz a aspectos formais, todos quantificáveis. “Ah, é em 7/8 e não em 4/4, então é mais instigante, tem mais qualidade”; “Oh, aqui temos uma canção com apenas dois acordes, portanto é pobre e inútil”; e por aí vai. “Riqueza harmônica”, “densidade poética” e outros fatores do tipo aparecem como medidas objetivas de valor artístico, mas a música não é um mero arranjo de sons cujo único propósito é desenvolver um discurso “sofisticado”, é uma forma de expressão que atende a diferentes disposições pessoais e a diferentes circunstâncias sociais em que acontece.
Não é a riqueza do léxico e nem a quantidade de conceitos e de reviravoltas estilísticas que definem a importância de um texto, mas o que ele diz, a adequação da forma dele ao conteúdo e ao ambiente em que é apresentado. A música comportou e comporta imensurável variedade de vozes de todo o planeta, de diferentes manifestações regionais e históricas. Julgar a música pela complexidade formal é navegar por um rio estreito e desconsiderar os oceanos. A música “erudita”, percebida por muitos como a culminância da arte, é produto original do Ocidente, mais precisamente da Europa. Ela expressa conceitos e sentimentos que outras formas não alcançam, mas não é “superior” a outras manifestações musicais.
Vários paradigmas de avaliação artística que perduraram por décadas e até mesmo por séculos foram instrumentos de exclusão cultural e social, mas inclusão é a palavra-chave do tempo em que vivemos. A inclusão não é uma concessão de quem a efetua, é o reconhecimento de que a compreensão e o gozo da vida requerem abrangência de informações e de experiências e permeabilidade a tudo o que nos é alheio.
Os três parágrafos anteriores seriam dispensáveis se não existisse uma forte discriminação, marcada por um grau enervante de hostilidade, à obra e à figura de Roberto Carlos. O preconceito é apanágio de quem julga, não do que é julgado.
Voltamos ao início. Roberto Carlos me faz chorar.
Não, ele não me ofendeu, não me prejudicou de nenhum modo. Sequer sabe que eu existo. Estive na presença dele uma vez, na década de 1990, em um show peculiar. Roberto apresentava-se há décadas em locais imensos, ginásios, estádios, mas eu o vi e o escutei em um espaço pequeno para os padrões dele, um teatro com capacidade para acolher pouco mais de 1.500 espectadores.
Musicalmente, a performance, exemplar, podia virar um disco ao vivo com quase nenhum ajuste na pós-produção fonográfica. No entanto, aconteceu um pequeno acidente visual no evento. Sem perceber que o espaço era menor do que os dos outros shows de Roberto Carlos, o técnico responsável pela máquina de fog largou mais fumaça no palco do que devia. Roberto e os músicos desapareceram sob a fumaça, mas continuaram a cantar e a tocar impecavelmente. Perfeccionista, Roberto deve ter ficado zangado com o ocorrido, mas para mim o momento foi poético porque restaurou por alguns minutos o cantor à dimensão dele com a qual estou mais familiarizado. Ao vivo, na minha frente, Roberto sumiu como pessoa e virou pura voz.
É na voz de Roberto que encontro um dos motivos para chorar quando o escuto. Ela contém uma carga original de dor que não é e não pode ser encenada. Não farei especulações sobre a origem da dor porque o que importa aqui é o efeito que esta teve e tem sobre os brasileiros. A música popular do Brasil documenta a dor de quem vive sob a custódia da “mãe gentil”, madrasta má de contos de fadas. No entanto, a representação formal da tragédia cotidiana e plurissecular do nosso povo é muitas vezes comedida no campo da música urbana. O samba, por exemplo, sempre conteve melancolia, a “lágrima clara sobre a pele escura” que Caetano descreve tão bem, mas o ritmo vivaz dos tambores, ganzás, pandeiros, tamborins, cavaquinhos, violões e flautas muitas vezes suaviza os aspectos mais tristonhos dele.
A vertente do samba que tratou as dores imorredouras de forma imoderada foi o samba-canção. O mestre indiscutível do samba-canção trágico é Lupicínio Rodrigues, que jamais temeu o recurso a imagens e a metáforas “rudes”, porém adequadas tanto do ponto de vista poético quanto existencial, à expressão da tristeza abissal que outros estilos musicais apenas tangenciaram ou sugeriram. Lupicínio é a encarnação da dramaticidade exacerbada própria dos gaúchos. As canções de vingança, de amor transformado em desprezo, de derrota pessoal e de “desejo de morte e de dor” de Lupi tiveram impacto tremendo sobre a canção urbana e até mesmo sobre a cultura do Brasil.
Além do samba-canção, na verdade anterior a ele, temos o que hoje muitos chamam de “sertanejo raiz”. A tristeza lancinante das canções sertanejas antigas provém da saudade de casa que os brasileiros migrantes, obrigados a sair das zonas rurais e partir para as cidades em busca de meios de subsistência, sentiam. É resultado também da impetuosidade das relações humanas em ambientes marcados pela escassez material e até pela ausência de instituições civilizatórias. A música caipira, designação usada para demarcá-la do que muitos entendem por “sertanejo” hoje, narra episódios, muitos verídicos, de fome, de morte, de traição, de banzo, cujo efeito é catártico como o do blues. Ao ouvir as desgraças registradas pela música caipira, o receptor projeta nelas suas fraturas emocionais e psicológicas e sai da experiência mais leve.
Ao surgir na década de 1950, o rock brasileiro replicou as constantes estilísticas definidas pelos pioneiros estadunidenses do gênero. Junto com o rock mais agitado, mais enérgico, veio o rock balada, propício para a expressão de sentimentos menos efusivos. As derrotas na vida e no amor tiveram guarida no rock balada, faceta do gênero presente no repertório do segundo LP de Roberto Carlos, de 1963, o primeiro dedicado ao pop rock, nas faixas “Só por amor”, “Onde anda o meu amor” e “Oração de um triste”.
O rock balada dos primeiros LPs transformou-se nas canções tristonhas de amor que fizeram a fama de Roberto Carlos pelas décadas seguintes, sobretudo nas de 1960 e 1970, nas quais ele consolidou-se como o artista de maior sucesso do país. Tal êxito não é fabricação de gravadora ou de mídias, embora a longa carreira de Roberto Carlos não tenha dispensado os expedientes promocionais que a indústria cultural dedica a artistas de música popular. A longevidade de Roberto Carlos acontece porque ele logrou, mas do que outros cantores do seu tempo, tocar nas chagas que a vida inflige em maior ou em menor grau a todos nós.
Roberto Carlos atingiu a ferida viva dos corações brasileiros com sua voz e com suas canções. Como cantor, ele é um paradoxo: dedica-se a textos musicais e líricos emotivos, mas a emissão vocal é controlada, contida, herança da influência que recebeu de João Gilberto. De todos os “filhos” de João Gilberto, Roberto é talvez o mais dedicado a seguir os conselhos do “pai”, ainda que em caminhos completamente diferentes. A capacidade de entregar fortes emoções aos ouvintes de modo controlado faz com que Roberto retenha uma aura de mistério: ele se expõe, mas há sempre algo que guarda para si mesmo. Ocultar algo não é jogo de cena, é um gesto natural de Roberto, fruto do instinto de autopreservação. Os ouvintes intuem (ou deviam intuir) que a barreira é, para o homem, menos uma imposição e mais uma necessidade. É um fenômeno que somos capazes de compreender, até porque o repetimos.
Roberto Carlos é o principal responsável pela síntese musical que muitos definem como “brega romântico”, estilo musical urbano que, tal como as grandes cidades, contém simultaneidades aparentemente díspares, mas indissociáveis. Há a amplificação sentimental própria das exteriorizações incontidas; há a ambiência sonora da música popular industrial, produzida por instrumentos eletroeletrônicos em estúdios profissionais e desempenhada por músicos experientes, mas muitas vezes anônimos, como todos somos nas ruas das metrópoles; há a variedade de fontes culturais, acomodadas de modo a gerar uma linguagem acessível, com naturalidade aparente, mas que é, na verdade, pura invenção; há o astro ou a estrela a emprestar a voz aos discos e ao rádio e a imagem à TV, às revistas de fofocas e a outros veículos de propagação de indivíduos “maiores do que a vida”; há a pessoa que canta, a narrar episódios sentimentais comuns a todos, que apresenta-se tipo “gente como a gente”, como se estivesse em condição de igualdade com quem a escuta; há a permanência do conteúdo e a efemeridade da forma.
A música popular romântica que Roberto Carlos pratica como ninguém neste país há mais de seis décadas foi (ainda é) alvo constante de críticas severas feitas por analistas culturais porque seria mais produto do que obra, mais anódina do que original, mais enganosa do que esclarecedora, mais genérica do que distinta e mais formulaica do que criativa. Os critérios usados para emparedar Roberto Carlos e outros artistas como ele vêm dos antigos tratados estéticos e das discussões acadêmicas sobre “alta cultura”, sobre o caráter “elevado” que a arte deve ter. É corte elitista efetivado por segmentos intelectuais ortodoxos de direita e de esquerda que serve à manutenção do status quo, seja ele econômico ou intelectual. A cultura de massa, fenômeno do século XX, para muitos pensadores, “padroniza”, “despersonaliza” e “aliena” e, por isso, é digna de malhação tal como (o boneco de) Judas Iscariotes no Sábado de Aleluia, em que os cristãos punem o apóstolo que traiu Jesus.
O filme “O Trem”, de 1963, dirigido por John Frankenheimer, narra a história de um coronel nazista que foge de Paris, ao final da ocupação alemã da França na Segunda Guerra Mundial, em um trem com as principais obras de arte daquele país. Refinado apreciador da “alta cultura”, o alemão é perseguido de modo implacável por um membro da resistência francesa, um homem bruto, instruído por seus comandantes a impedir que os tesouros artísticos deixem o território francês. No encontro final entre ambos, o coronel nazista discursa: “Aqui está o seu prêmio, Labiche [o nome do membro da resistência]. Algumas das maiores pinturas do mundo. Você sente alguma excitação por estar perto delas? Uma pintura significa tanto para você quando um colar de pérolas significa para um macaco. Você me venceu por pura sorte… Você é nada, Labiche. É apenas um pedaço de carne. As pinturas são minhas, sempre serão. A beleza pertence aos homens que sabem apreciá-la. Ela sempre pertencerá a mim ou a um alguém como eu”. Labiche, calado, encerra a falação elitista do nazista com um tiro. É o momento de longa que resume o pensamento dos amantes das “belas artes” (opostas às “vulgares”). O fato do discurso ser proferido por um nazista não é gratuito, ao menos para mim.
A caracterização da música popular romântica como expressão degradada/degradante feita por e para “subordinados”, desconsidera o modo como as pessoas percebem e apropriam o repertório e os proponentes deste segmento. Letras “genéricas” sobre relacionamentos amorosos são capazes de abarcar as histórias de amor específicas dos ouvintes. Por outro lado, os receptores que não viveram experiências que propiciam tal projeção podem também envolver-se com as situações narradas pelas canções justamente pelo caráter geral delas. O investimento emocional dos ouvintes nas canções românticas de Roberto Carlos e de música popular romântica (ou “brega romântico”, como quiserem) é legítimo e saudável. O resto é presunção de quem crê na existência de seres humanos superiores aos demais, visão antidemocrática e repugnante.
É claro que Roberto Carlos possui sua cota de obras menos inspiradas, mas ele, sozinho ou em parceria com Erasmo Carlos, é autor de muitas canções exemplares. Podia enumerar várias, mas indico somente uma para demonstrar o que digo: “É preciso dar um jeito, meu amigo”. A canção, em destaque por figurar no filme Ainda Estou Aqui, gravada (com arranjo excepcional) por Erasmo Carlos, foi escrita apenas por Roberto Carlos. A informação partiu do próprio Erasmo, que infelizmente não está conosco para testemunhar o resgate de sua gravação antológica.
Já ouvi gente a dizer que Roberto, como compositor, vivia como um parasita nas costas de Erasmo, um absurdo que entrega o tanto de preconceito e de incompreensão que muitos dedicam ao cantor nascido em Cachoeiro de Itapemirim, cidade do interior do Espírito Santo. O fato de Roberto ser por décadas o mais popular do país alimentou o desprezo por ele. Nega-se a ele o talento e a capacidade de comunicação imediata e natural com ouvintes de diferentes idades e origens. A popularidade assombrosa de Roberto, facilitada pelos veículos de comunicação de alcance nacional, tem um antecedente. Na década de 1930, o rádio e os discos de goma-laca espalharam a virtuosa voz de Orlando Silva pelo país e ele tornou-se o primeiro superastro da nossa música popular. O epíteto “O cantor das multidões” tinha fundamento.
Orlando Silva não manteve por mais de dez anos o imenso reconhecimento que angariou por razões pessoais, mas Roberto permanece no topo da cadeia alimentar da indústria cultural há mais de seis décadas, não sem pagar um preço alto por isso. Depois de alcançar a fama na década de 1960, ele passou a proteger a sua vida particular, mantendo-a, tanto quanto possível, longe dos mexericos alheios. Suas manias eram vistas a princípio como meras superstições, mas depois soube-se que eram decorrentes de transtorno obsessivo-conpulsivo, distúrbio facilitado por uma rotina marcada por restrições advindas da fama em larga escala.
A cada LP que lançava nos anos 1970, Roberto era reprovado pelos críticos por não introduzir inovações bombásticas em sua música, mas os “bem pensantes” foram incapazes de perceber que a obra do cantor retrata a existência dele da juventude à maturidade. Os disco de jovem guarda, por exemplo, falam de carrões e de namoricos e narram episódios anedóticos. Ao final da década de 1960, jovem adulto, Roberto canta sobre as angústias comuns a essa fase da vida. Na primeira metade dos anos 1970, Roberto abre espaço em suas canções para o erotismo adulto. Mais adiante, surge a exacerbação religiosa e a descrição comportada dos relacionamentos entre amantes maduros. Em resumo, a discografia de Roberto Carlos descreve, ainda que de maneira estilizada, as transformações pelas quais passou ao longo dos anos. Por tabela, documenta também a trajetória do brasileiro médio contemporâneo ao artista. Portanto, os álbuns de Roberto não são “todos iguais”.
Para além (ou aquém) de todas as tentativas de explicar Roberto Carlos, temos os aspectos da fruição musical que as palavras (ao menos as minhas) não conseguem detalhar. As canções/gravações de Roberto que me fazem chorar não evocam memórias do meu passado. Elas me comovem pelo que são. Muitas pessoas deixam-se levar pela memória afetiva no apreço a canções e não há nada de errado aí, mas não preciso disso para envolver-me afetivamente com elas. Certos arranjos de sons e de palavras bastam para me fazer chorar. Alguns artistas são capazes de me fazer chorar com mais frequência do que outros. Roberto é assim. Ele me faz chorar por razões boas.

Zeca Azevedo é. Por enquanto.