A Política em Paul Weller

 

 

Em mais de 40 anos de carreira, Paul Weller estabeleceu como marca autoral um ecletismo como compositor e performer dificilmente igualado. No seu amplo leque temático que inclui romantismo, rebeldia e comportamento, um tema recorrente é a disputa de classes vista pelo ângulo do underdog, apesar de Weller há muito tempo ser um artista milionário e bem estabelecido. Suas origens de filho da classe operária, no entanto, lhe conferem um background criativo que perpassa seus anos como líder do The Jam e chega com menos intensidade até a carreira solo, iniciada em 1990. Mas adquire especial ressonância nos anos 80, quando ele criou o combo Style Council e se tornou militante do Red Wedge- coletivo de ativistas ligado ao Partido Trabalhista Britânico.  Durante considerável período, na ultraconservadora década de 80, um diligente militante socialista disputou espaço no Hit Parade com Boy George, Duran Duran e Phil Collins.

 

Paul Weller permanece como uma espécie de herói nacional na Inglaterra, até para quem discorda de seus posicionamentos.  Em que pese uma sólida base musical importada parcialmente dos Estados Unidos, suas canções pouquíssimas vezes causaram algum impacto do outro lado do Atlântico.  As letras do Modfather são uma criptografia arcana para os americanos com gírias e observações sobre o modo de vida britânico que descendem diretamente de seus mestres Pete Townshend e Ray Davies.  Ele nunca foi sequer cogitado para o Rock and Hall of Fame mesmo sendo um excelente vocalista e provavelmente o maior compositor do gênero surgido desde a era punk.  Esse texto não pretende fazer a retrospectiva crítica de sua prolífica discografia, mas abordar uma característica especifica: a do compositor de canções de protesto, especialmente aquelas escritas em resposta ao Thatcherismo, cuja ascensão coincide com a tomada da cena musical por toda uma geração de jovens artistas, como Elvis Costello, Sting, Joe Strummer e o próprio Weller.

 

O Partido Conservador Britânico chegou ao Poder em 1979, ganhando as eleições gerais para uma sucessão de quatro mandatos consecutivos que mudariam a face da Inglaterra ao romperem com o chamado consenso do pós-guerra. Os anos 1970 haviam sido de intensa crise econômica agravada pela percepção geral de que o país era governado por sindicatos e grupos de interesse.  Havia uma relação de forças bem mais complexa em jogo entre vários segmentos da sociedade, mas o eleitorado demandava mudança. Por suprema ironia, Paul Weller chegou a dizer em 1977 que a Inglaterra se beneficiaria de um governo conservador. Margareth Thatcher assumiu como Primeira Ministra prometendo a execução imediata de medidas de austeridade, desregulamentação, corte de gastos e controle inflacionário.

 

Desde o final da Segunda Guerra, Trabalhistas e Conservadores se revezavam no poder, mas a Inglaterra continuava sendo administrada com base numa visão consolidada que garantia políticas sociais de caráter universal não importando qual o partido incumbente.   O Serviço Nacional de Saúde, por exemplo, foi criado durante o Governo Trabalhista em fins dos anos 1940, mas a proposta original nascera de um ministro conservador antes ainda do fim da Guerra. Na área específica da cultura, a expansão na educação de gratuidade estendida até o segundo grau, possibilitou o acesso de milhares de jovens de classe operária a escolas de arte, o que traria impactos profundos na rica cena londrina de meados dos anos 1960, especialmente na moda e na música. É possível afirmar com segurança que o rock britânico não teria o mesmo vigor sem estas instituições de ensino. A ponto de as principais bandas do período (Beatles, Kinks, Stones, Cream, Who, Yardbirds, Pink Floyd) contarem com pelo menos um ex-estudante de escola de arte entre seus membros.  Geralmente o protagonista não só na diretriz musical, mas na formulação do conceito e da imagem do grupo.

 

No momento em que Margareth Thatcher começou a cumprir suas promessas, segmentos da música pop começaram a ensaiar respostas críticas, a princípio com canções bem humoradas como Stand Down Margareth do grupo de ska The Beat.  A Guerra das Malvinas fez emergir um lado sombrio daquela administração, gerando protestos mais reflexivos e virulentos.  Vinculada inicialmente ao emergente movimento punk, O The Jam desde o primeiro disco se pautou pela verve apurada em comentários sociais certeiros. Paul Weller como único compositor do trio foi aperfeiçoando suas observações de classe em torpedos como Eton Rifles, Going Underground, Little Boy Soldiers e Man In The Corner Shop– uma pequena joia que sintetiza sua habilidade em modelar perspectivas e pontos de vistas distintos em canções de três minutos.

 

Quando o The Jam lançou The Gift, seu último álbum, Paul Weller se firmara como compositor de melodias altamente inventivas com letras cada vez mais perceptivas e elaboradas.  Suas canções já não se ajustavam ao formato único de guitarra, baixo e bateria, como fica evidente em Town Called Malice e Carnation– em minha opinião, a obra prima do seu repertório.  A construção segue a exposição em primeira pessoa de um sociopata revelando sua indiferença ao sofrimento alheio (I trample down all life in my wake/I eat it up and take the cake/ I Just avert my eyes to the pain/Of someone’s loss helping my gain– eu pisoteio em toda forma de vida no meu caminho / eu como e guardo a torta/ eu desvio meus olhos da dor da perda de alguém que me ajuda a ganhar). Weller deixa para torcer o braço do ouvinte no final transformando a aparente autoconfissão no diagnóstico implacável de uma sociedade corrompida pelo egoísmo e pela usura:

 

And if you are wondering by now who I am
Look no further than the mirror –
Because I am the greed and fear
And every ounce of hate in you.

( E se você está pensando a essa altura quem sou eu

Não olhe além do espelho

Porque eu sou a ganancia e o medo

E cada grama de ódio em você)

 

 

Ao perceber que o The Jam esgotara suas possibilidades, Weller partiu para um conceito antitético ao rock com guitarras que forjara sua identidade artística- a chamada ética punk a qual ele parecia subscrever integralmente. Um rompimento tão radical quanto o que impulsionou Bob Dylan para a eletricidade após os anos na folk. music. O Style Council foi montado como um duo com o tecladista Mick Talbot, virtual desconhecido na época, com a intenção de imprimir retoques de sofisticação no tratamento de vários gêneros da música pop, sem qualquer preconceito. No Style Council cabia synth pop, bossa nova, blue eyed soul, folk, jazz e ate rock and roll. Weller assumiu o risco de excluir grande parte da sua audiência nessa empreitada, ainda mais audaciosa pelo fato do The Jam ter encerrado atividades com seu único álbum a chegar ao primeiro lugar nas paradas. Como era previsível, grande parte da crítica roqueira já se indispôs com o Style Council a partir de sua ideia básica.

 

Após alguns singles e EPs de sucesso, o primeiro álbum do Style Council, batizado de Café Bleu, foi gravado com jovens músicos desconhecidos da cena do soul e jazz britânicos. Era visível o esforço em manter uma sintonia com tendências do pop contemporâneo.  A veia política se insinuava na balada The Whole Point of No Return (Just one blow to scratch the itch/The law’s made for and by the rich) e no rap A Gospel, mas esse viés atuante era contrabalançado por faixas românticas como Paris Match e You´re The Best Thing e na introspeção de My Ever Changing Moods, três canções de refinada extração.  Nem todos os experimentos se sustentavam em Café Bleu, mas na sua desigualdade e confluência de estilos havia um painel promissor do que estava por vir.

 

Enquanto o Style Council trabalhava no estúdio, a Inglaterra foi tomada pelo noticiário da Greve dos Mineiros, deflagrada como reação a uma decisão do Governo de fechar minas que eram consideradas deficitárias e dependiam de subsidio governamental para se manter. O impacto imediato veio no desemprego de 20 mil profissionais, quase todos concentrados em pequenas vilas que dependiam desses salários para sobrevivência econômica. O movimento durou praticamente o ano todo e chegou a mobilizar  150 mil trabalhadores, especialmente no norte do país, em Yorkshire.

 

A reação dos poderes constituídos foi violenta.  Os confrontos em rede nacional com pais de família sendo surrados por cassetetes contaminariam diretamente o álbum seguinte do Style Council, agora adensado por um baterista fixo (o então adolescente Steve White) e pelos vocais femininos de D. C Lee, futura esposa de Weller.  Os primeiros sinais foram expostos já no outono com o lançamento de Shout To The Top, um dos grandes singles dos anos 80 e autêntico chamado á luta, cujo vídeo promocional mostrava o grupo tocando em frente à pinturas que representavam a Greve dos Mineiros.

 

No final do ano, Paul Weller participou do esforço de caridade pela Etiópia junto com outros integrantes da aristocracia do rock britânico que resultou no single Do They Know It´s Christmas, cujos méritos e intenções ainda geram debates acalorados. Sete meses depois, em julho de 1985, O Style Council foi uma das primeiras atrações a se apresentar no Live Aid, em Wembley, o maior show beneficente já produzido. O repertório selecionado reunia três das canções mais aguerridas do grupo:  Big Boss Groove, Internationalists e Walls Come Trumbling Down (Are you gonna get to realize/the class war’s real and not mythologized). De camisa vermelha, Paul Weller estava em excelente forma, mas o desfile de auto congratulações ao longo do dia teve clara precedência sobre qualquer tentativa de politizar o evento. O trio Peter, Paul and Mary não conseguiu sequer espaço para cantar apesar de sua importância histórica na luta pelos Direitos Civis.

 

Internationalists e Walls Come Trumbling Down eram duas das faixas de Our Favourite Shop, o segundo e melhor álbum do Style Council, lançado um mês antes do Live Aid. Desde a capa em que Weller e Talbot aparecem conjurando a subcultura Mod, passando pelas epigrafes abrasivas, o álbum tinha o tom de um manifesto  cultural, de louvor ao working class hero.  Musicalmente, embora imprima sempre uma assinatura própria, a dupla sumariza suas principais influências, o rhythm and blues, northern soul e o rock britânico sessentista, com toques de jazz a la Georgie Fame. Mas as letras não convidavam a qualquer apelo nostálgico. Mais da metade das faixas são comentários instantâneos sobre a Inglaterra no auge de sua hegemonia neoliberal. Durante uma semana, em junho de 1985, o Style Council roubou o primeiro lugar nas paradas britânicas do hipertrofiado Brothers in Arms do Dire Straits- espécie de produto símbolo do que havia de mais banal e conformista no rock daquele período.

 

Os temas de Our Favourite Shop se entrelaçam formando uma crônica única de lamentos e reflexões apresentados como argumento para mudança política e social. Homebreakers abre o disco com a narrativa de famílias alquebradas pela falta de oportunidades em pequenas cidades.  Weller usa por vezes slogans de compreensão direta ou se ampara em imagens contundentes para ilustrar seu drama em miniatura (All the love in the world/ can’t put dinner on the table /All the hate that I feel no love could put right– todo amor do mundo não põe comida na mesa/ o ódio que eu sinto nenhum amor pode evitar). São estas coletividades devastadas que compõe o cenário da faixa seguinte, a bossa nova All Gone Away (Come take a walk upon these hills/ And see how monetarism kills /Whole communities even families /There’s nothing left– Venha caminhar por essas colinas e veja como o monetarismo mata/ comunidades inteiras, até mesmo famílias/ nada restou). A Stones Throw Away, uma comovente balada erguida sobre arranjo de cordas, situa a luta dos mineiros em Yorkshire num amplo contexto de resistência análogo ao que acontecia no Chile, Polônia e África do Sul.

 

Na visão de Weller não existe acidente ou infortúnio em tragédias sociais. A responsabilidade decorre das ações de uma elite econômica que orquestra a rapinagem do trabalho alheio: No choice or chance for the future/ The rich enjoy less tax -Sem escolha ou chance para o futuro/ os ricos desfrutam de menos impostos (Everything to Lose). Mobilidade social não está ligada a meritocracia, mas a capacidade de se ajustar a um sistema de exploração: theres only room for those the same/those Who play the leeches games-Só existe espaço para os mesmos de sempre/ aqueles que jogam o jogo dos parasitas (Lodgers).

 

A despeito de desenhar um quadro genuinamente sombrio de iniquidade, tensões raciais, desenraizamento e consumismo, Our Favourite Shop está longe de ser um disco depressivo. A acidez dos comentários é compensada em melodias robustas, cantadas com vigor, revolta, compaixão. E com arranjos diversificados de claro apelo radiofônico. Weller, claramente, não queria pregar para convertidos e sim levar sua música aos não engajados ou aqueles acostumados apenas ao discurso da corrente dominante. Tampouco existe nostalgia sobre uma Inglaterra perdida. Analisadas em conjunto, as canções apontam o caminho da união de trabalhadores e a organização coletiva para uma sociedade mais justa. Essa é o tema da vibrante Walls Come Trumbling Down que encerra o álbum numa nota elevada.  O fato de que o discurso neoliberal de Reagan e Thatcher era então replicado como verdade imutável confere ainda mais dignidade a esse álbum excepcional.

 

Logo após lançar Our Favourite Shop, Paul Weller se converteu num ativista em tempo integral, como integrante do Red Wedge que buscava engajar os jovens na disputa política por meios de shows e debates públicos. Eram também membros efetivos o cantor Billy Bragg e Jimmy Sommerville vocalista do Bronski Beat. Em alguns shows. eles ganhavam a adesão de Elvis Costello, Everything But The Girl, The Smiths, Prefeb Sprout, Sade,  entre outros. A história do Red Wedge merecia um artigo a parte, pois trata-se de um raro alinhamento da música pop aos quadros de um partido de esquerda.  Quando os Trabalhistas perderam a terceira eleição consecutiva em 1987, o coletivo debandou.

 

No melhor da sua produção, o Style Council apresentou um relicário fundamental para compreensão do que foi a Inglaterra thatcherista, tanto quanto os filmes de Stephen Frears e Ken Loach feitos no calor da hora ou leituras posteriores como Billy Elliott, ambientado durante a Greve dos Mineiros. Mas as canções de Weller se deslocaram daquele momento histórico e continuam mais relevantes do que nunca, completamente aptas a interpretar uma conjuntura na qual sociedades inteiras, inclusive a nossa, são subordinadas as conveniências do capital. Nada realmente mudou. Quando perguntado recentemente porque não escrevia mais canções políticas, Paul Weller respondeu apenas que não faria sentido: “Eu teria que compor as mesmas canções de 40 anos atrás”.

 

 

Rodrigo Merheb

Rodrigo Merheb é pesquisador e autor de "O Som da Revolução".

3 thoughts on “A Política em Paul Weller

  • 14 de novembro de 2019 em 10:43
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    Sempre bom encontrar um texto sobre Paul Weller em português, parabéns. Quero deixar aqui apenas um adendo importante no sentido de honestidade com a história de Weller: Paul não simplesmente “deixou de escrever letras políticas”, ele se desiludiu com o Partido dos Trabalhadores na Inglaterra e diz se arrepender de ter se filiado em entrevista (https://www.independent.co.uk/news/billy-bragg-out-of-tune-with-new-labour-1349178.html) pois, assim como a filial do Partido daqui, ele odiou a política, os falsos sorrisos e as caravanas que não pareciam autênticos a ele e que acabou por ser mais do mesmo e ser o grande fator do fracasso das eleições de 87 – um lado político que Billy Bragg, um dos fundadores da Red Wedge, abraçou com afinco e sem escrúpulos até os dias de hoje.

    Ao contrário do que você diz em seu texto muito dos temas políticos abordados no Style Council não são muito revisitados por Weller, que seguiu cada vez mais uma vertente existencialista de revolução começando no primeiro tombo e recomeço de sua carreira em 1993, passando pela admiração dele por Robert Wyatt (outro revolucionário socialista que se desiludiu com a causa e enveredou para uma evolução mais humana que política) e culminando nas experimentações sonoras como o bom “Modfather” que sempre foi. Weller luta muito mais contra o establishment da guerra cultural e midiática do que política atualmente, caminho mais do que coerente para quem conhece seu trabalho desde 1974, pré-The Jam e por amor a Ray Davies.

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  • 7 de agosto de 2019 em 01:14
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    Olha, muito obrigado. Fico feliz que tenha gostado. Um grande abraço

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  • 24 de julho de 2019 em 18:49
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    Que texto animal, Rodrigo ,parabéns ! Não sabia muita coisa do Paul Weller ,mas com sua ajuda caí num mar de bandas incríveis . Muito legal o fato de grandes bandas terem tido ao menos um membro oruindo de escolas de arte .Adorei !

    Abraços

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