Um táxi com o Marillion

 

Escrevi este texto em 2005. Ele ainda é adoravelmente atual para mim, mas convém fazer algumas correções.

“Misplaced Childhood”, terceiro disco de inéditas do Marillion, está disponível no Spotify em três versões. A original, de 1985, remasterizada em 2017; a versão “deluxe”, também de 2017, com quatro CDs, entre material inédito e ao vivo, e a do fim dos anos 1990, dupla, à qual o texto se refere.

O original do texto foi publicado no Scream & Yell, neste link aqui.

 

 

Você lembra de 1985? Eu lembro. Há vinte anos que procuro por alguma coisa que ficou perdida naquele ano estranho. Sabe como é, algumas desilusões, algumas frustrações, algumas empreitadas bem sucedidas, uns poucos arrependimentos, afinal de contas, ter quinze anos em 1985 ainda era algo light e que exigia pouca responsabilidade para com os outros e o mundo. De qualquer forma, por uma maneira um tanto óbvia, me lembro de 1985 em forma de música. Só que a música tem uma característica estranha de se travestir de acordo com o grau de afeto que sua memória lhe confere.

 

Explicando: se você viveu um momento bom e ele, por algum motivo, foi sonorizado por uma música ruim, um abraço para você, sua trilha sonora vai obrigatoriamente passar por aí em recordações futuras. A minha trilha sonora internacional de 1985 gira em torno de quatro discos. “The Head On The Door”, do Cure; “The Dream Of The Blue Turtles”, do Sting; “Songs From The Big Chair”, do Tears For Fears e “Misplaced Childhood”, do Marillion. Sei que poderia ser muito melhor. E também pior. Para minha felicidade, Dire Straits não grudou na minha cabeça nessa época. Mas não posso exatamente contar vantagem do que me lembra esse ano tão querido.

 

O grande lance nisso tudo é que eu não tinha o “Misplaced Childhood” do Marillion há até poucos dias. E comprei hoje. Explico: em 1985 eu tinha o vinil. No advento do CD, a obra dos progressivos ingleses foi adquirida prontamente. Nas idas e vindas da existência, o disquinho veio e foi. E, para minha surpresa, ele foi e não voltou. Erro corrigido hoje. Com classe. Me dei ao trabalho e ao gasto de comprar uma versão dupla, com o disco propriamente dito e uma série de outakes e lados B. A glória maior que eu poderia querer.

 

Eu precisava ouvir aquilo de qualquer jeito. Das músicas em suíte, que formavam o antigo lado A do vinil, eu ainda sei a letra de cor. São mais de trinta minutos ininterruptos de verborragia simbolista, parida pelo então vocalista Fish, sobre juventude perdida na Escócia  oitentista. Dane-se, eu amo. A caminho do trabalho, atrasado, tive que lançar mão de um táxi e, surpreso com minha própria cara-de-pau, perguntei ao senhor que dirigia o Santana se ele poderia dar a licença de ouvir o disco. O senhor ouvia tango, “Por Uma Cabeza”, conhecido por muitos como o tango que toca em “Perfume de Mulher”, no qual Al Pacino dança com Gabrielle Anwar. Enfim, o tango, que é lindo, foi sacado do CD player e deu lugar à versão alternativa de “Heart Of Lothian”. E eu cantei a letra toda, com vontade, imitando o sotaque escocês de Fish.

 

Vibrei nos maravilhosos e um tanto flácidos versos “It’s six o’clock in the tower blocks, stalagmites of culture shock, and the trippers of the light fantastic boedow, hoedow, spray the pheremones on this perfume uniform”. Ou “The anarchy smiles in the royal mile” ou ainda “Rooting tooting cowboys with lucky little ladies on the watering holes, they’ll score the friday night goals”. Nossa, isso tudo é muito legal. Cantando loucamente no táxi atingi o bairro da Tijuca, local de trabalho. Agradeci imensamente ao motorista e percebi que saltei do táxi com quinze anos de idade. Quase parecia que era do velho Integração Metrô-Ônibus que eu saltava, rumo ao velho Colégio Santo Agostinho.

 

Sobre o disco do Marillion, recorro à velha verdade de que não adianta entender baldes de música, basta sentir alguma coisa boa para a música ser boa. Com quinze anos a gente entende melhor essa máxima do que com 34. Ou mais. Talvez seja um caso de inversão proporcional do gosto, vá lá saber. E, só pra constar, esse é o disco que tem o maior hit da carreira da banda, “Kayleigh”. Só soube que era um nome de mulher recentemente. Talvez com quinze anos eu intuísse essa verdade.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

One thought on “Um táxi com o Marillion

  • 17 de fevereiro de 2020 em 09:34
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    Nooossa… que viagem…
    Em 1985 tinha preconceito, achava o Marillion uma imitação do Genesis. Adorava as capas mas não ouvia os álbuns. Redescobri a banda no final dos 90, pelo nosso colega Antônio e assisti um fantástico show no metropolitan com a Paulinha (rafa). O Marillion foi trilha sonora do nosso início e fim…
    Sempre que ouço a dobradinha Kayleigh/Afraid of sunlight na voz do Hogart me emociono. Tenho 3 versões do Misplaced… em Cd.

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