Bloco da Terreirada Cearense: cultura nordestina pela lente da contemporaneidade

 

 

É inegável: a diversidade da folia de rua carioca retrata a diversidade da cultura brasileira. Tem pra todo mundo e, se organizar direitinho, todo mundo curte o que gosta! Nesse contexto, verdadeiras joias da riqueza do país são relevadas em meio a múltiplas cores, sons e saberes.

 

Uma destas joias é o bloco da Terreirada Cearense, criado há 10 anos, a partir da festa homônima, independente e alternativa, idealizada pelo cantor, compositor, instrumentista e brincante Junú. Natural de Juazeiro do Norte, região do Cariri, no Ceará, o artista desenvolve um trabalho de música, dança e performance, com influências e linguagens que transitam entre o tradicional e o contemporâneo. Arrebata olhos, ouvidos e cinturas por onde passa.

 

“Criamos a festa como um evento alternativo ao que já existia ao cenário de então, e também para receber amigos e amigas que vinham das regiões Nordeste e Norte para o Sudeste. Começamos no Tá na Rua, na Lapa. Nesta época, cheguei ao Rio com meu álbum Calendário, com uma pegada mais de música de raiz, com formação de viola, rabeca, pífanos e percussões, e com um show chamado Forró de Raiz, na mesma linha, mas que englobava muito mais que o forró. O forró como alguns pensam tem certo clichê que reproduz uma caricatura. Não busco fazer uma caricatura do Nordeste. Gosto de pensar em como influenciar as pessoas pela minha arte, pelo que ela traz de novo”, explica Junú. Hoje a festa Terreirada Cearense circula de forma trimestral por Rio de Janeiro, Ceará e São Paulo.

 

Da festa foram pra rua e nasceu o bloco da Terreirada Cearene, que se apresenta dia 21 de fevereiro, às 14h, sábado de Carnaval, na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro. O grupo já fez seu pré-carnaval dia 19 do mesmo mês, no município de Crato, na região do Cariri, e ainda fará seu pós-carnaval em 29 de fevereiro, às 15h, na Praça Rio dos Campos, na Vila Pompéia, em São Paulo.

 

Para esta grande ópera popular contemporânea, como gosta de citar, Junú conduz um espetáculo ao qual se somam uma ala de brincantes de pernas de pau, outra de percussão, e um grupo de coro musical da oficina de canto. No repertório são apresentadas canções autorais, musicas da cultura popular e clássicos da música cearense e brasileira. Um caleidoscópio de dança, poesia, cores e muitos ritmos.

 

Mas tudo isso não se faz sozinho. Junú conta com Thais Bezerra (maestrina da Oficina de percussão), Raquel Potí (coordenadora da ala de Pernas de Pau), Sofia Kern (coordenadora da Oficina de Canto) e Julia França (coordenadora da Oficina de Cordel). Com elas, leva para as ruas o que há de mais representativo da cultura nordestina, especialmente da região do Cariri, ao apresentar a diversidade musical de outro Brasil, do sertão, da periferia, através de um olhar de agora. “Ousamos romper com muita coisa. Nas estruturas e culturas tradicionais há muito preconceito, muito machismo”, aponta o artista.

 

Junú enfatiza que a marca da Terreirada Cearense (e de seu bloco) é a cultura popular tradicional reinventada. “Muitas vezes pensam em um Nordeste medieval, antigo, parado no tempo, mas falamos de mestre e maestrinas que estão vivos, enfrentado as dificuldades de um país como o nosso. E no carnaval de rua, em qualquer lugar do Brasil, é quando os adultos brincam. A brincadeira, o que puxa isso, principalmente no Nordeste, é esse lugar lúdico que levamos ao público, com os folguedos, com forró de raiz, cocos, peças de reisado, cantoria”, explica.

 

E a bateria não fica pra trás: com cerca de 80 participantes, a maioria mulheres e puxada por uma maestrina, apresenta ritmos como baião, xote, tombo, valsa, marchinha de reisado, boi, forró… Muita coisa de vários lugares do Nordeste, com atenção especial ao que vem da região do Cariri, onde pulsa (e pula!) o coração de Junú.

 

“Nosso trabalho tem uma energia muita feminina, onde todos as pessoas encontram lugar, se sentem acolhidas e se deparam com um ambiente de debates e de reflexões muito amplas sobre discriminação, preconceito, machismo, representatividade, diversidade. Sempre falamos que na Terreirada não há espaço para isso, e todas as famílias, de todos os formatos, são bem vindas. Se seguíssemos certa lógica de mercado, talvez estivéssemos financeiramente melhor, mas estamos preocupados em manter o projeto acessível”, contextualiza.

 

Os enredos da trupe sempre abordam temas sobre as lutas sociais, sobre as minorias e sobre o combate ao preconceito e à discriminação. O de 2020 chama-se Brasil de Dentro, e trata do Brasil dos interiores e das comunidades, e de como as pessoas se conectam com eles. “É inevitável se ter um trabalho conectado a essas matrizes e não exercer uma fala que não seja política. Vamos contar histórias de amor, de luta e de poesia dos sertões, entendendo que os sertões podem ser periferias das metrópoles ou interiores do país”, diz Junú. Este ano, o repertório foi todo trabalhado sobre o tema, o que inclui um discurso diverso e profundo, com músicas tradicionais e novos compositores.

 

Além disso, a Terreirada se insere em um contexto mais que necessário: o Rio de Janeiro, felizmente, tem a cultura nordestina misturada às suas tradições de cidade. Seja em uma quermesse, na religião, na música ou nas pessoas. A presença do forró – e talvez em menor grau também de outros gêneros como o xote, por exemplo – como alternativa musical também é notável. E não é de hoje: a cidade conta, entre outros com espaços como o Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas, em São Cristóvão. “São décadas de levas de nordestinos que chegam para trabalhar e trazem sua cultura. A cidade tem muito carinho por isso, mas muitas questões estruturais e de discriminação precisam ser mudadas”, afirma Junú, para citar outro ponto importante: a evolução do tradicional, do que é absorvido e de como é absorvido.

 

“A música comercial se apropriou dessas forças, nomes e marcas e vendem um produto que não é forró – veio de algum lugar dessa matriz, mas é uma música comercial, sem ritmo, harmonia e melodia que tenham ligação direta com forró”, diz Junú. No caso do artista cearense, a busca é por outra coisa: “Com o entendimento, carinho e respeito pelas matrizes, você pode fazer forró com guitarra, baixo e bateria, e ainda assim ser autêntico e inovador, como o foram Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro”, explica. Ele está certo: a festa ou o bloco da Terreirada Cearense, de um modo geral, têm uma postura – positiva, engajada e conhecedora de causa – dos saberes nordestinos, da cultura nordestina, que vai  além da música.

 

“Buscamos sempre aprender, e não apenas reproduzir coisas. Com amor, tolerância e humildade. Quando faço um reisado, já sai com tudo que vivi, de samba, de rock’n’roll, a chamada world music, música eletrônica, ibérica… Sou um defensor das culturas brasileiras. Um povo que não tem cultura é um povo dominado. Devemos estar atentos para não reproduzir nem relativizar nenhum discurso de ódio ou de intolerância. O Brasil tem essa possibilidade de ser um lugar melhor, novo. Temos essa poesia. Devemos estar atentos e fortes, mas com poesia”, finaliza Junú.

 

Que os povos se unam em torno das ideias, das cores e do som da Terreirada Cearense!

 

Até a próxima!

Celso Chagas

Celso Chagas é jornalista, compositor, fundador e vocalista do bloco carioca Desliga da Justiça, onde encarna, ha dez anos, o Coringa. Cria de Madureira, subúrbio carioca, influenciado pelo rock e pela black music, foi desaguar na folia de rua. Fã de poesia concreta e literatura marginal, é autor do EP Coração Vermelho, disponível nas plataformas digitais.

One thought on “Bloco da Terreirada Cearense: cultura nordestina pela lente da contemporaneidade

  • 19 de fevereiro de 2020 em 17:56
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    Trabalhei por duas vezes produzindo eventos com do Bloco Terreirada Cearense e confesso que me impressionou muito o trabalho do grupo em manter as tradições sem abrir mão do novo. Criando mais que um bloco. Uma experiência atemporal e lúdica que só quem viu consegue descrever. O engajamento de seus integrantes é digno de nota, todos muito empenhados em fazer acontecer da melhor forma possível, numa entrega primorosa. Vida longa ao Terreirada Cearense, uma experiência incrível e cheia de cores, sons e sotaques. Imperdível.

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