Teenage Fanclub, Grajaú-Tijuca, 1993
Antes de falar sobre a importância de “Thirteen”, o terceiro álbum dos escoceses do Teenage Fanclub, que completou trinta anos há alguns dias, eu peço licença para recordar um momento bacana da vida, intrinsecamente relacionado a este disco. Porque música e memória andam juntas.
Eu tinha 22 anos quando pisei na Uerj pela primeira vez. Era como se eu estivesse chegando em um lugar mítico, um shangri-lá, um nirvana, algo do gênero. Desde o fim de 1987 eu vagava pelos mares da indecisão sobre minha carreira. O que fazer? Eu saíra do colégio com o terceiro lugar do vestibular de Sociologia da Puc-Rio. Não fiquei nem um mês por lá. Dois meses depois, lá estava eu no segundo lugar do vestibular de Direito da Estácio de Sá. Não concluí o curso a um semestre do seu final. Passara o ano de 1992 trabalhando no escritório de uma rede de hotéis em Copacabana, ganhando um salário adequado para minha vidinha de então e vendo cada vez mais o diploma de advogado chegar perto das minhas mãos. Não era o que eu queria, mas, ora, estava tão perto. Não lembro o dia exato, mas tive uma epifania e decidi que iria atrás do que me parecia mais adequado como carreira: jornalismo. Após uma sondagem minuciosa e várias consultas ao Guia do Estudante Abril, vi que, naquele momento, a Uerj era o ideal para mim. Distância relativamente curta de casa, curso noturno, várias vantagens.
Era um mundo pré-Enem. Cada instituição tinha seu vestibular. No emprego da rede de hotéis, no qual eu era um office-boy jurídico de luxo e vivia sob o olhar mal humorado de uma secretária geral chamada Solange, resolvi chutar o balde e estudar na frente de todos. A ideia era investir no que poderia me dar pontos: Geografia, História, Português e Redação, uma vez que as exatas nunca foram o meu forte. A demissão não tardou e serviu para sustentar os meses de dezembro, janeiro e fevereiro. Não lembro do dia da notícia de que havia passado, mas lembro de acompanhar resultados, projeções, até fazer estimativas a partir do que saía no Jornal dos Sports, que era o veículo de informações mais confiável no assunto. Passei estudando sozinho, sustentado pela ótima base que o os onze anos de Colégio Santo Agostinho haviam me dado. E, voltando ao primeiro parágrafo, em algum ponto de março de 1993, lá estava eu, adentrando os domínios da Uerj, um conjunto de blocos cinzentos no Maracanã, zona norte do Rio. Lá me aguardavam os melhores amigos que fiz nesta vida.
Léo Salomão, sujeito tímido e magrinho, estava à margem das conversas entre os calouros da vez. Eu nunca fui desenvolto no trato com desconhecidos, mas senti forças para chamá-lo para a rodinha, o que ele fez prontamente. Após algumas frases, descubro que ele, assim como eu, era leitor da revista Bizz e adorava várias bandas em comum. E mais: vinha de uma temporada longa em São Paulo, o que – na minha visão – lhe dava certo arejamento e maiores possibilidades de conhecer coisas diferentes. Começamos a tabelar, trocar informações, até que decidimos escrever resenhas de discos por conta própria. Alguns dias depois, numa aula de Filosofia, topamos com um professor conservador fã do alemão Theodor Adorno, uma contradição essencial, mas que parecia herdar deste o que havia de pior: a incompatibilidade entre arte e gosto popular. E, para sustentar sua opinião, cometeu o erro de citar os Beatles como fazedores de “arte menor” ou algo assim. Me lembro de contestar isso – mas não recordo as palavras – e ver um sujeito com cabelos compridos se juntar ao meu argumento com força. No fim da aula, eu e Léo fomos conversar com aquele sujeito, cujo nome era Ricardo Benevides, e, desde então, início de 1993, tenho a noção exata de que estes dois sujeitos são os irmãos que a vida guardou para me dar quando fosse a hora certa. E como este momento parecia ter chegado, combinamos de fazer algo essencial: uma reunião semanal para ouvirmos música. Dito e feito.
Essas reuniões eram itinerantes. As nossas casas se revezavam como sedes, mas logo ficou evidente que as residências de Léo (no Grajaú) e de Bené (na Tijuca) eram as mais próximas e convenientes. Como tínhamos coleções incipientes de CD’s e LP’s, a solução para tentar ouvir o que saía nas páginas da Bizz era passar na Video Game Center, uma loja que ficava na galeria Vitrine da Tijuca, na Praça Saens Peña. A VGC tinha uma política muito comum no Brasil do início dos anos 1990, combalido após o governo collor, no qual ninguém tinha grana ou possibilidade de comprar discos importados, tampouco existia um sistema com ares de sci-fi como é o streaming digital atual. Sendo assim, alugar CD’s era a solução mais viável e, num mistério que até hoje me parece indissolúvel, a VGC ostentava um acervo impressionante de álbuns importados e novíssimos. Ou seja, era um jeito, não só de ouvir importados raros, mas de ouvir o que estava acontecendo no mundo naquele momento, com uma urgência impressionante. Tudo do Nirvana, do Pearl Jam e demais bandas do grunge americano estava lá, mas, muito além disso, também estavam lá os discos de gente como Pavement, Buffalo Tom, Grant Lee Buffalo, Smashing Pumpkins, Breeders, Pixies, entre muitos, muitos outros. E também estavam lá os três discos que o Teenage Fanclub havia lançado até então: “Catholic Education”, “Bandwagonesque” e o novíssimo, inestimável “Thirteen”.
Pronto, voltamos ao texto sobre o disco.
Eu ficara profundamente animado ao ler a resenha de “Bandwagonesque” na Bizz, cerca de dois anos antes. Era como se alguém narrasse a chegada do messias em forma de disco, a perfeição possível, finalmente materializada. Peso das guitarras daquela época, mais a melodia dos Beatles, mais as harmonias dos Byrds e o toque final de Big Star – outra banda que suamos sangue para poder ouvir naquele tempo. Enfim, lembro de que ouvimos o “Thirteen” antes dos outros e até hoje olho para sua capa, na qual está estampada uma misteriosa e iconoclasta bola de vôlei, e sentir uma alegria inexplicável. Sim, porque, como vocês já devem ter percebido, a música do Teenage Fanclub vai além do ato de ouvir uma canção, ou mesmo ouvir um álbum. É uma celebração da simplicidade da vida, materializada em melodia, em letras diretas sobre o amor, a amizade e o cotidiano. E quando tudo isso acontece, por exemplo, numa canção como “Hang On”, que abre “Thirteen”, de fato, a gente acredita que o messias, não só chegou, como é nosso amigo e ouve as mesmas coisas que nós.
O álbum não é um dos preferidos dos fãs. Ou não era. Na época, o grupo – formado então por Norman Blake, Raymond McGinley, Gerard Love e Brandon O’Hare – enfrentava um ponto crucial em sua trajetória, ainda curta. Após o sucesso de “Bandwagonesque”, como proceder dali em diante? O tom de “Thirteen” é menos expansivo e comercial, talvez até mais pesado, porém, seus momentos gentis são comoventes. “Hang On”, a faixa de abertura, mistura uma introdução pesada, guitarreira, que deságua num arranjo que poderia ter sido feito em 1968. Tudo é psicodelia, Beatles e Byrds. A letra diz “aguente firme, tenha calma, peraí” ou algo no gênero, tudo aplicado ao cuidado e ao carinho para com o amigo/a em apuros. Mas tem mais coisa por aqui. “Commercial Alternative” tem melodia emocionante, harmonias vocais comoventes e um formato doce para emoldurar esta dúvida existencial e estética que o grupo enfrentava naquele momento. “Norman 3” é uma das mais queridas canções da banda, uma verdadeira preferida dos fãs, enquanto “Song To The Cynic” é outro exemplo de questionamento, dessa vez com um arranjo que antecipa o Weezer em um ano (a banda de Rivers Cuomo ainda estava na garagem em 1993).
O grande momento, no entanto, me parece ser “Gene Clark”, a canção que encerra o percurso sonoro de “Thirteen”. Certamente composta em homenagem ao ex-Byrds que lhe dá o título, “Gene Clark”, na verdade, mais parece uma composição de Neil Young, outra influência decisiva no portfólio do TFC. A introdução longuíssima, na qual o solo de guitarra da canção surge logo de cara, aparentemente fora de lugar, repete vários arranjos semelhantes feitos pelo velho canadense ao longo de sua carreira. E quando o solo termina, precisamente no minuto 3:35, a voz de Gerard Love (autor da canção) chega para sobrevoar o ambiente e recolocar tudo em seu devido lugar. No fim das contas, o verso “No matter what you do / All it turns to you / No matter you say / You’ll hear it all someday” fica ecoando na mente, indo em frente.
Não sei se meus amigos queridos têm tanto amor pelo “Thirteen” como eu, mas devem concordar que o álbum é um dos símbolos daquele início de 1993, no qual achamos que poderíamos escrever nossas resenhas de discos pela vida afora. Bem, cerca de um ano depois disso, tínhamos um jornalzinho que circulava pela Faculdade de Comunicação Social, o El Orongo, dotado de uma seção de música, na qual arriscamos os nossos primeiros escritos públicos sobre discos e tal. O hoje roteirista e cartunista Arnaldo Branco, nosso veterano e integrante do temível grupo Demônios do 10, comentou que “de crítico da Bizz, a Bizz já tava cheia”, o que, até hoje soa como um elogio. E foi com o El Orongo em mãos, que eu e Léo fomos até a redação da então iniciante Revista Rock Press, pedir um espaço para escrevemos lá. Naquela época, a redação era a casa do casal que resolvera meter as caras e fazer sua própria revista de música: Robson Vera e Claudia Reitberger.
Mas aí já é outra história.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Que bonito o texto.
“Thirteen” é escabroso mesmo! “Hang on” é uma das melhores faixas de abertura que existem, e quem discorda é clubista, “Gene Clark” é outra maravilha, mas acho que minha preferida é “Norman 3”, uma música em que o refrão se repete dez vezes e não enjoa.