Roger Waters se reapropria de seu álbum mais importante
Roger Waters – The Dark Side Of The Moon Redux
48′, 10 faixas
(Cooking Vinyl)
Roger Waters tinha trinta anos quando compôs e gravou, ao lado de seus colegas de Pink Floyd, o álbum “The Dark Side Of The Moon”. Por vários motivos, este disco se tornou um dos mais importantes da história da música pop. Podemos citar alguns deles: amadureceu e forjou a sonoridade característica do Pink Floyd; uniu conceito e qualidade musical de uma forma especialmente bem-sucedida; gerou canções que ultrapassaram todos os testes do tempo; criticou a sociedade contemporânea ocidental sob o ponto de vista do indivíduo criado por ela; sofreu todos os tipos de banalização e apropriação que as obras ditas universais sofrem. Ou seja: “The Dark Side Of The Moon” teria deixado de pertencer a seus criadores e passado a fazer parte de um panteão clássico de obras de arte, ou algo no gênero. Sendo assim, Roger Waters ou qualquer outro co-participante do Floyd, estaria impedido por uma espécie de ética, de purismo, de moral, de revisitar ou mexer nos contornos clássicos do original, sob pena de receberem xingamentos e acusações mil. Certo? Bem, Roger não acha. Tanto que, cinquenta anos depois, próximo dos oitenta anos de idade, lançou este “The Dark Side Of The Moon Redux”. E ele é sensacional.
Há em jogo motivos musicais e, digamos, historiográficos. É quase inédito ver uma obra tão importante quanto “Dark Side” sendo revisitada por seu criador e não por um tributo picareta desses tão comuns sob a égide da sociedade da nostalgia. E é revigorante porque Roger conseguiu ressignificar um trabalho que se tornou tão universal, reapropriando-se dele, ao mesmo tempo que o adaptou para os tempos atuais, comprovando uma certa “elasticidade” já contida no original. Se o disco de 1973, de fato, criticava uma modernidade temerária que já apontava na reta, a revisita de 2023 é escrita e gravada sob os escombros das destruições consequentes. A despersonalização, a velocidade, a primazia do dinheiro sobre outras questões, tudo está no álbum de 1973. Não importa, por exemplo, se o arranjo soturno que reveste a “Time” de 2023 é mais ou menos belo que o de cinquenta anos atrás, diante do fato de que a letra – de Waters – cumpriu tudo o que dizia então. O tempo passou, cada vez mais rápido, perdemos muito, ganhamos pouco, envelhecemos mesmo – ele, mais que todos, parece – e as consequências estão aí mesmo.
E é neste plano de significados pessoais e coletivos, que esta revisita tem seu maior e inquestionável mérito. Ela é uma história contada por um homem transformado pelo processo que ele mesmo descreveu de forma tão clara. Não só o tempo passou vertiginoso, mas o dinheiro se tornou algo muito mais do que uma unidade de medida para o comércio e para o acúmulo de riqueza, ou seja, “money is a gas” mesmo, como já fora dito há tanto tempo atrás. Dinheiro é justificativa para idolatria, sinônimo de virtude e de exemplos a serem seguidos. A linha de baixo do original está presente na nova versão, porém, o ritmo está mais lento, mais irônico, com Waters atualizando o discurso com várias frases canto-faladas – um recurso que ele usa ao longo da nova versão com frequência. As vocalises belíssimas de “The Great Gig In The Sky” foram substituídas por fraseados instrumentais e Waters lendo uma mensagem enviada por um fã que está doente num hospital em Zagreb, capital da Croácia.
“Us And Them”, minha preferida pessoal do álbum original, ressurge ainda mais soturna e dolorida. Lembro de vê-la numa reportagem da extinta TV Manchete como trilha sonora para a explosão do ônibus espacial Challenger, em 1986 e me doer os ossos de tanta tristeza por conta da escolha e do acontecido. A letra segue afiada como uma lâmina, pregando sobre o pouco proveito na guerra, na morte, nos conflitos. O tom adotado aqui é de uma resignação amarga, de uma constatação do esforço empreendido em troca de muito pouco, mas que não foi o bastante para a desistência. Talvez este seja o momento mais emblemático da empreitada de Waters e desta nova versão do clássico de 1973. Ele nunca foi uma figura de comportamento simples, conciliador e conformado, pelo contrário. O tempo o fez mais radical, agudo e forte, cerrando fileiras com causas marginalizadas e desiguais, enfrentando monstros tão grandes quanto dos de “The Wall”.
Roger Waters é um radical, no bom sentido do termo. E imperfeito. Aqui, no entanto, os méritos por rever sua obra, clamá-la de volta para si e reafirmar seu significado, é digno de aplausos inquestionáveis. Esta versão redux de “The Dark Side Of The Moon” é bela e serve como uma altiva e impávida companhia para o álbum original de 1973.
Ouça primeiro: “Time”, “Us And Them”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Enfim, uma resenha lúcida sobre o álbum. É impressionante a quantidade de gente achando que Waters estaria de certo modo competindo com a obra original.
Pra mim, ele fez um redesenho de maneira sóbria, respeitosa e, sobretudo, criativa.
Ah, e Us and them também é a minha predileta.