Shaun Ryder, o maior inglês vivo
Shaun Ryder – Visits From Future Technology
Gênero: Rock, eletrônico
Duração: 41:42 min.
Faixas: 11
Produção: Sunny Levine
Gravadora: SWRX
Lá nos anos 1980, um daqueles tabloides ingleses fez uma eleição entre vários nomes da música alternativa e abriu para os leitores escolherem O MAIOR INGLÊS VIVO. O resultado foi Morrissey na cabeça. Naquele tempo isso fazia certo sentido, afinal de contas, ele era o vocalista torturado, anti-monarquia, anti-Thatcher, dos Smiths. O tempo, porém, provou que Morrissey se tornou um personagem muito menos interessante e muito mais próximo do que caracteriza os ingleses a quem parecia antagonizar há 40 anos. Conservador, fascista, xenófobo, isso para ficar apenas nos temas mais conhecidos do grande público. Eu acho que o posto de Maior Inglês Vivo já deveria estar há muito tempo em outras mãos e penso que Shaun Ryder, o ex-Happy Mondays, ex-Black Grape, “Madchester Mad Hatter” e, desde meados dos anos 2010, uma celebridade televisiva britânica, deveria ocupá-lo. Quase morto, com os miolos fritos por todo tipo de droga e conduta abusiva, este homem manteve-se vivo, meio que apontou o caminho da música britânica nos anos 1990 e, como se não bastasse, encontrou um álbum feito há mais de dez anos, que agora surge para o público, sob a batuta de Alan McGee – o descobridor do Oasis – e com um monte de amigos. A gente só faz aplaudir.
“Visits From Future Technology” tem tudo o que as bandas de Madchester tinham e muito mais. Tem grooves punk/funk calcados em faixas imaginárias dos Rolling Stones; tem doideira existencial e paradoxal; tem autoironia; tem humor e tem tiração de onda. O tempo conferiu a Ryder uma aura de sobrevivente ou de, como ele mesmo diz, de “poeta dos despossuídos”. Ele simboliza uma outra Inglaterra, ainda que venha da mesma cidade que Morrissey. Aliás, como diz a imprensa de lá, ele é uma espécie de “versão antropomórfica” de Manchester, cidade do norte do país, de origem operária, de gente mais voltada para uma visão popular e menos elitizada da Inglaterra. Basta ver o Oasis em oposição ao Blur pra sacar um pouco das visões da Velha Ilha que cabem nessa discussão. Mas a gente não vai ficar neste ping-pong social, a música é boa demais para ser deixada de lado.
Shaun não soa tão bem desde o início dos anos 1990, quando aparecia na MTV cantando “Step On” ou “Kinky Afro”. Sua música segue com os mesmos vocais tortos e quase indecifráveis sem tradução. Seu sotaque é inconfundível e sua visão atual – careca, gordo – é um contraste impressionante com o maluco-beleza que aparecia nas telinhas e fotos das revistas. Mas o que “Visits From Future Technology” oferece não é uma mera revisita aos dias de ouro de Madchester, pelo contrário. É uma espécie de atualização pessoal, de visão que se transforma – e às pessoas – com o passar do tempo. Não é mais o maluco beleza falando, é o quase sexagenário careca e gorducho. E, caramba, eles são – e não são – a mesma pessoa. Isso dá ao disco uma adorável cara novidadeira que se materializa logo no maior hit que Shaun oferece ao mundo desde “Kinky Afro”: “Close The Dam”, a segunda faixa aqui, um colosso dançante e eletrônico de uma precisão rara em dias como os atuais. É dessas faixas que sintetizam tudo, de Massive Attack mais reggae aos tais grooves stoneanos, passando por seu próprio brilho funky. Ouçam e tentem ficar parados/as.
E tem mais: “Mumbo Jumbo”, a abertura, já vem com clipe psicodélico e louco, meio que atualizando o ouvinte sobre o que tem sido a vida de Shaun nos últimos, sei lá, 30 anos. Também tem a maravilhosa “I Can Stop Anymore”, meio reggae, meio melodia sessentista de origem Motown, que disserta sobre a impressão que todo viciado tem de que pode largar seu vício a qualquer hora. Tem “Electric Scales”, a faixa mais Happy Monday presente por aqui; a dança irresistível de “Straighten Me Up”, mais uma canção de DNA Rolling Stone; as guitarras sintetizadas de “Monster”; o bom humor storyteller de “Popstar’s Daughters”; a revisita às pistas de dança com o fecho de “Clubbing Rabbits”. Tudo aqui é tão legal que dá vontade de dar um beijo na careca de Shaun.
“Visits From Future Technology” é um desses milagres sonoros. Encontrado por amigos do cantor, que havia esquecido que o gravara há dez anos, o disco é uma porrada e nos faz lembrar de tudo que é legal nessa coisa chamada rock. É sobre nós, sobre sobreviventes, sobre vencedores e, sim, sobre ferrados, derrotados e seres que se recusam a desaparecer. Shaun é tudo isso. Ouça e ame.
Ouça primeiro: o disco todo é sensacional.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.