Ryan Adams finalmente lança álbum engavetado
Ryan Adams – Blackhole
35′, 11 faixas
(Pax Am)
Não adianta, Ryan Adams tem a manha. O cara segue como um dos mais talentosos artesãos sonoros do rock americano do século 21. Está tudo lá. A influência de Neil Young, a admiração pelas sonoridades de Morrissey & Marr, a poesia americana, urbana e desencantada, a capacidade de criar melodias perfeitas e, além disso tudo, uma urgência/necessidade de se expressar através da música que beira a obsessão. Desde que criou seu selo Pax Am, Ryan produz incessantemente e consegue lançar grande parte do que faz. São torrentes de álbuns temáticos, discos de covers, singles, EPs, edições comemorativas e tudo isso estabelece uma relação muito próxima com os fãs que o acompanham desde os tempos do Whiskeytown. Atualmente ele está em turnê comemorativa de seu primeiro disco solo, “Heartbreaker” e, até alguns meses atrás, vinha se apresentando regularmente pelos Estados Unidos e Inglaterra para sua horda de admiradores devotados e fiéis. E é para essa galera que ele lança agora este ótimo “Blackhole”, um feixe de canções compostas entre 2003 e 2006, que foram arquivadas gradualmente à medida em que sua relação com a gravadora Lost Highway ia se deteriorando. Agora, quase vinte anos depois, temos essas onze canções em versões oficiais e lançadas do jeito que deveriam. Quer dizer, quase isso.
O “quase” está na questão do nível da mixagem, que é péssimo. A sonoridade é além do comprimido, realmente aguda e, se não estivéssemos falando de ótimas canções, “Blackhole” seria igual ao seu título. Mas, ao contrário, a lindeza e a urgência dessas faixas compensam a irritação sonora e, mais que isso, dá um “twist” de excentricidade ao lançamento e à própria empreitada em si. Sim, porque, desde que anunciou que soltaria finalmente o álbum, os fóruns de debates e troca de informações entre fãs em plataformas, como o Reddit, não falam de outra coisa. Adams é esperto e nerd de música, sabe muito bem o ti-ti-ti que este tipo de lançamento pode causar em colecionadores contumazes. Olhando nesses fóruns a gente acha pessoas que acompanham todos os shows do sujeito, mapeiam seus perfis nas redes sociais, enfim, gente que praticamente depende dele para refletir, ouvir música e, a partir disso, pensar a vida. Parece exagero, mas, antes do lançamento, já havia gente que tinha detectado quais faixas já haviam surgido em versões alternativas, ao vivo, com pequenos trechos citados num ou noutro perfil, ou seja, um verdadeiro time de detetives/stalkers enlouquecidos e devotados.
Poderia – e de certa forma, é – ser estranho, mas este tipo de fã é próprio da mitologia do rock e dos lançamentos físicos desde muito tempo. Pode ser que as redes sociais tenham amplificado sua ação, mas eles estão aí desde o início da coisa. O conteúdo de “Blackhole”, como dissemos, felizmente é ótimo. São faixas que herdaram um pouco da urgência e da confusão de álbuns como “Rock’n’Roll” e “Easy Tiger”, que Ryan lançou entre 2003 e 2006, os quais, segundo ele, envelheceram mal. Adams alega em entrevistas, que este foi o “último período que viveu sob o efeito de drogas”, algo que se refletiu, segundo ele mesmo, na qualidade ruim das letras. É curioso pensar que, em outro feixe de canções produzidas, mais ou menos, no mesmo momento, tenha uma carga tão diferente. É o caso de “Blackhole”, cujas canções, além de melhorarem, de fato, em termos líricos, conservam essa pegada roqueira que se comunica ainda com o fim do Whiskeytown e com o início da carreira solo de Adams, marcado pelos ótimos “Heartbreaker” (2000) e “Gold” (2001).
É interessante lembrar que Ryan estava encantado com o rock que bandas como Strokes estavam fazendo naquele momento. Não com os primeiros trabalhos delas, canções como “Last Nite” ou “Someday”, mas com o desenvolvimento que haviam tido. O maior exemplo fica com o próprio Strokes de “Reptilia”, que vem do segundo álbum do grupo, “Room On Fire”, de 2003. Por essas e outras dá pra estabelecer um parentesco de urgência e approach entre ela e, por exemplo, “So Alive”, faixa que Ryan gravou em “Rock’N’Roll”, do mesmo ano. Sendo assim, “Blackhole” tem nada menos que a totalidade das faixas próximas dessa estética. Algumas faixas, no entanto, brilham mais que outras. “Call Me Back” é uma lindeza folk rock de primeira grandeza, dessas lindezas sublimes acima do bem e do mal. Tem o momento de pagar tributo aos Smiths e ao Morrissey solo, que vem na forma de duas faixas perfeitinhas, a saber, “Help Us” (com timbres de guitarra que parecem saídos da parada alternativa inglesa de 1983) e “Likening Love To War”, essa parecendo um lado-B de “Viva Hate”, a estreia de Morrissey solo, em 1988. Também tem a pós-punk em alta velocidade “Starfire”, a lírica “Catherine”, que tem os mesmos timbres de “Nuclear”, faixa de Adams em “Demolition”, álbum de 2002.
“Blackhole” é um disco sem falhas, como muitos que Ryan Adams lançou ao longo do tempo. Passou da hora dele ser reconduzido ao lugar de grande nome da música americana dos últimos vinte anos e ser saudado como tal.
Ouça primeiro: “Call Me Back”, “Help Us”, “Likening Love To War” , “Starfire”, “Catherine”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.