Father John Misty lança seu melhor álbum
Father John Misty – Mahashmashana
50′, 8 faixas
(Sub Pop)
Se você vir alguma lista de melhores álbuns de 2024 sem a presença deste soberbo “Mahashmashana”, novo trabalho de Father John Misty, pode ter uma certeza: não se trata de uma lista séria. Digo isso sem qualquer medo de errar e baseado na impressionante evolução do trabalho de Josh Tillman, o homem por trás do nome. Depois de uma carreira solo inicial e uma participação de quatro anos como baterista do Fleet Foxes, Josh assumiu-se como Father John Misty e encampou uma figura controversa e, diria eu, apocaliptica, cujo trabalho começou muito inserido nos tiques e taques do folk rock praticado nos anos 2000 e veio incorporando, bem aos poucos, elementos do pop rock setentista e do rock alternativo. Este “Mahashmashana” é seu sexto disco de estúdio, sendo que, neste ano, ele já lançou uma compilação chamada “Greatish Hits: I Followed My Dreams and My Dreams Said to Crawl”. Ainda que seus álbuns sempre tenham apresentado algum detalhe importante, foi a partir de “God’s Favorite Customer” que Misty começou a chamar a minha atenção e isto se transformou em interesse genuíno quando ele soltou o brilhante “Chloë And The Next 20th Century”, em 2022. A canção “Olvidado (Otro Momento)”, uma bossa nova estilizada e desencantada, surgiu como o ponto alto daquele trabalho. Sendo assim, a expectativa para este novíssimo disco era bem alta e dá pra dizer que Misty a ultrapassou.
Em primeiro lugar, “Mahashmashana” é uma palavra em sânscrito, que significa “campo onde todos são cremados”. Ou seja, se antes dava pra imaginar a figura de Misty cantando e se apresentando com um cartaz “O FIM ESTÁ PRÓXIMO” na mão, agora é certo que ele canta para o que vai restar deste nosso mundo e desta nossa sociedade. Com a colaboração de Jonathan Wilson, que é seu fiel escudeiro de estúdio e co-produtor, Misty consegue uma sonoridade que é totalmente tributária dos álbuns de George Harrison e Elton John no início dos anos 1970, seja na maneira como os instrumentos surgem nos arranjos, seja na temática e na grandiosidade. As canções são enormes, líricas, cheias de pianos, cordas e andamentos que têm a balada rock’n’blues como ponto de partida. O site Far Out Magazine também detectou essa semelhança com o trabalho de Harrison, mas acrescentou um elemento estranho, como se o ex-beatle fosse colocado em um palco decadente de Las Vegas. Faz todo o sentido.
Só que essa “decadência” soa como um poderoso elemento no meio do todo. É como se Misty e sua banda, seus colaboradores e seu público, estabelecessem uma cumplicidade total pelo fim do mundo e pelo que vem depois, borrando as fronteiras do tempo e soando, ora como se estivéssemos a ponto do fim, ora como se já estivéssemos além dele, num grande pós-mundo estranho e ameaçador. Todas essas considerações, que podem parecer confusas em alguns momentos, fazem total sentido e se alinham totalmente quando a faixa-título irrompe pelos fones de ouvido e conduz o ouvinte por mais de nove minutos de pianos e cordas secundando um vocalista movido pelo transe do conhecimento. No meio-tempo, versos como “Love’s the birthright of young people”, ou seja “O amor é direito de nascença das pessoas mais jovens”. Não é pouca coisa. Em seguida, “She Cleans Up”, faixa contra o machismo, o patriarcado e a podridão da sociedade ocidental “esclarecida” quando a questão tem a ver com encurtar realmente o abismo que separa os diferentes.
Em “Mental Health”, provavelmente a mais impressionante canção do álbum, Misty e seus amigos escolhem um arranjo de balada de amor derramado e setentista, cantando muito parecido com a inflexão de Elton John, mas falando sobre Michel Foucault, o panóptico, o caos e um verso definitivo: “Mental health, mental health//There’s no high virtue held in this crazy world”. Na arrepiante “Screamland”, o arranjo é impressionante e vai do silêncio à explosão enquanto Misty vai enfileirando versos em tom de constatação inevitável. Em “I Guess Time Just Makes Fools Of Us All” ele incorpora os maneirismos sonoros de uma faixa disco em câmera lenta, com percussão, pianos, metais e um clima de fim de festa absolutamente decadente para falar da impossível equação do tempo, de sua velocidade e de como o seu transcorrer explica tanto do que acontece e do que não acontece conosco neste 2024. Fechando o disco, “Summer’s Gone”, toda cordas e lirismo, se valendo do fim do verão como o mito do tempo em que a alegria e o contentamento ficaram, definitivamente, para trás.
Deve ser complicado para gente como Father John Misty saber que seu país terá um segundo mandato de donald trump. Por outro lado, tal fato é a certeza absoluta de que as frases e o conceito deste impressionante “Mahashmashana” estão totalmente inseridos no contexto da realidade. Da inevitável realidade.
Ouça primeiro: “Summer’s Gone”, “I Guess Time Just Makes Fools Of Us All”, “Screamland”, “Mental Health”, “Mahashmashana”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.