César Lacerda revê seus primeiros dez anos de carreira

 

 

 

 

 

César Lacerda – Década
38′, 13 faixas
(YB Music)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

 

Este álbum não é uma coletânea, mas, como as coisas com César Lacerda são adoravelmente imprecisas, ele também o é. De fato, “Década” compila canções que o cantor e compositor mineiro criou nos últimos dez anos e que tiveram destinos distintos. Ou ele as gravou em um de seus cinco álbuns lançados até agora (um deles em parceria com o artista paulistano Rômulo Froes, em 2016) ou as cedeu para gente como Lenine, Ceumar, Zezé Motta, Gal Costa as registrassem. Seja como for, a verve do compositor César é uma das mais sólidas e interessantes da música brasileira atual. Ele é um cronista do nosso tempo, alguém que parece pairar sobre os fatos, de modo a adquirir a impressionante isenção com que escrutina os modos e maneirismos da gente, seja no plano coletivo, seja no plano individual. Ele pode fazer isso com canções que falam direto ao coração como um raio ou usar de sutilezas líricas que soam espantosas. De um jeito ou de outro, César atinge o objetivo e, como disse na resenha de seu trabalho anterior, “Nações, Homens ou Leões”, de 2021, o faz com a abrangência de um artigo acadêmico que a gente pode cantar junto. É uma habilidade intensa.

 

 

Como dissemos, “Década” não é “apenas” uma compilação. Tem esses novos registros para gravações anteriores. As parcerias de César com artistas como Chico César, Jorge Mautner, Paulo Miklos e Ronaldo Bastos, ajudaram a calibrar sua pena e influenciá-lo positivamente ao longo do caminho. O revestimento do álbum é calcado na interação voz-violão, base primordial das canções, na qual César se insere com uma abordagem meio caetânica, meio bossa nova, sempre com clareza. De cara, uma canção inédita recebe o ouvinte na entrada do álbum. “Faz O Teu” é uma espécie de ode ao mundo avesso ao das celebridades e da superexposição das redes sociais: “Faz o teu / Pisa devagarinho / Enquanto os homens gritam / Suas glórias, troféus / … / Faz o teu / Faz sem fazer alarde / No tempo que lhe cabe / Aos poucos, por vez / No intervalo das derrotas / Entre a perda e o que esgota / Faz um ninho pra viver”. Nestes versos – e no restante da letra – César valoriza a capacidade das pessoas manterem uma vida construtiva, consciente, útil, na qual não há a necessidade de viver sem pensar no próximo, no seu papel no mundo e em como isso pode trazer benefícios a todos. Pode parecer pouco, mas é quase tudo em tempos tão brutos quanto os atuais.

 

 

Aliás, a obra de César sempre soou como um grito de delicadeza e sensibilidade emitido em meio a ruídos desimportantes. A canção “Minha Mãe”, que foi gravada por Gal Costa em seu álbum “A Pele do Futuro” (2018), com participação de Maria Bethânia, é um exemplo de como esta relação afetiva pode ser transformadora e nada banalizante. A regravação que César faz em “Década” oferece mais força para a letra e para a melodia, praticamente reescrevendo a canção. Assim também acontece com a ótima “Desejos de Um Leão”, do ótimo “Nações, Homens ou Leões”, igualmente realçada por uma levada mais djavânica que se insinua ao longo da melodia. E a lindíssima “Touro Indomável”, uma das letras mais inspiradas sobre o estabelecimento definitivo do amor como sentimento e modo de vida, que foi reafirmada pelo novo arranjo. E uma de suas mais sensacionais criações, “Isso Também Vai Passar”, do álbum “Tudo, Tudo, Tudo, Tudo” (2017), que já era muito acústica no original, também está presente, com letra aliviada pelo fim do governo anterior, ela pode voltar-se para a efemeridade do tempo, propriamente dito. E para a nossa diminuta força diante disso.

 

 

Há outra canção inédita presente aqui: “O Amor Fincou Raízes Por Aqui”, que César escreveu para sua companheira, Victória Leão, curta como um suspiro fundo, em que ele enumera versos como “O amor lavrou seus verdes por aqui / Com plantas pra todos os fins / Se dedicou e fez viver / Mangas, orquídeas, fícus, ervilhas / Algas e alecrins”, misturando aspectos da profissão de Victória, que é chef de cozinha, com elementos simples do amor. Além dela estão de volta belos momentos da música de César, como “Espiral” (que foi gravada por Ceumar), “Faz Parar”, do ótimo álbum “O Meu Nome É Qualquer Um”, a tal parceria com Rômulo Froes. Não há absolutamente nenhum momento desperdiçado ao longo destes quase 38 minutos.

 

 

César Lacerda é um artista que precisa ser mais conhecido e valorizado. Ele não faz música para a brutalidade do mundo de hoje, mas não abre mão de entendê-lo, criticá-lo e até apontar soluções para que as coisas melhorem. E o faz através de sua música, sua sensibilidade e capacidade de dar cores poéticas ao que parece simples, banal até. É dessa matéria-prima e dessa habilidade que ele faz sua obra. Você precisa conhecê-lo. Já.

 

 

Ouça primeiro: “Espiral”, “Touro Indomável”, “Isso Também Vai Passar”, “Minha Mãe”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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