Os Severinos do Sucesso

 

Em 1994 eu cursava Jornalismo na Uerj e já era tempo de lançar a segunda edição do jornalzinho que editávamos, o “El Orongo”. Todo estudante de comunicação tem essa fase, a dos projetos e das coletividades e aquele jornal era a forma de nos expressarmos para o mundo. Para um mundo pré-Internet, diga-se. Significava digitar textos escritos à mão no computador, diagramar, fazer boneca, tirar cópias, pagá-las do próprio bolso e dar o resultado para o maior número de pessoas. Sim, de graça. Ninguém queria ganhar dinheiro, apenas ser lido. Pois bem, na segunda edição – raríssima hoje em dia – de “El Orongo”, estava um texto com este mesmo título, “Os Severinos do Sucesso”, falando sobre a importância de “Severino”, disco que os Paralamas do Sucesso lançavam naquele ano.

Era eu que cuidava dessa seção de música, né? Pautava a mim mesmo e escrevia tudo, mais ou menos como é hoje, aqui na Célula Pop. Sendo assim, tanto tempo depois – que, no fim das contas, faz parecer que foi ontem – o título do artigo original ainda serve para definir a mudança que o trio vivenciava. Egressos de um álbum mal compreendido – “Os Grãos” (1991) e um disco solo do vocalista e guitarrista Herbert Vianna (“Ê Batumaré”, 1992), os Paralamas precisavam dizer algo para o público. Era um tempo em que o país vivia o erro de ter dado a Fernando Collor a chance de presidir a nação e promover medidas que fizeram mal a quase todos os brasileiros. Tudo isso estava no ar, essa tristeza, esse gosto amargo. Era necessário olhar para quem éramos e para o que queríamos fazer da vida. Vocês sabem, esses sentimentos e impressões pairam na sociedade e dão origem à arte, seja de qual campo ela for. A música, ainda mais a popular, é uma esponja em relação a essas vivências. Logo, o tempo promoveu as condições para “Severino” existir.

O disco de Herbert, de fato, abriu o caminho para “Severino”. Influenciado pela leitura de autores como João Cabral de Melo Neto e imerso num processo de redescoberta de sua própria origem paraibana, Herbert estava ciente de que o próximo álbum do grupo passaria por semelhante processo. Bi e Barone, escudeiros colaborativos do mais alto nível, sabiam que a banda tinha muito a dizer, justo a partir do processo que Herbert vivenciava. A apreciação das canções de “Ê Batumaré”, gravadas artesanalmente na garagem do vocalista, eram quase esqueletos prontos para manipulação. Entregue ao experimentalismo e, como diz Barone hoje em dia, “à vontade de esticar seu potencial artístico”, os Paralamas deram asas a uma imaginação compartilhada com aquele momento do país.

Nem só de Brasil, no entanto, “Severino” foi feito. É o álbum mais internacional dos Paralamas. Tem Brian May, do Queen, fazendo solo em “El Vampiro Bajo El Sol”, uma canção do argentino Fito Paez (que toca piano na faixa) em homenagem a outro argentino, Charly Garcia. Tem Tom Zé duetando com o jamaicano Linton Kwesi Johnson em “Navegar Impreciso”, canção sobre a relação entre Portugal e Brasil na aurora da União Europeia e do peso da relação entre ex-colônia e ex-metrópole neste contexto. Tem produção do inglês Phil Manzanera, ex-Roxy Music, na época interessado em produzir bandas latinas para a EMI. Tem versão em espanhol de “Go Back”, clássico dos Titãs. “Severino” é um disco diaspórico de influências da própria banda, reunidas para a ocasião.

Apesar dessa pluralidade, a fidelidade ao conceito e a despreocupação em tocar nas rádios e MTV Brasil deu as cartas. O disco não fez sucesso no país, pelo contrário. “Cagaço”, conhecida como “Fracasso” nas internas da banda, foi o primeiro single, que não emplacou. Lembro de ouvi-la na rádio na época, sem alarde. Depois veio “Dos Margaritas”, com letra surreal e autorreferente, que também não deu liga. Paradoxalmente, esta canção puxou “Severino” para o sucesso na América Latina, do México ao Uruguai, recorte geográfico no qual o trio era conhecido desde meados dos anos 1980. E isso fez com que “Severino” fosse relançado por lá com o nome de “Dos Margaritas”, obtendo um sucesso inédito por aqui, configurando um êxito na carreira internacional dos Paralamas.

Mais um paradoxo: a turnê do disco rendeu o álbum ao vivo “Vamo Batê Lata”, que foi lançado em 1995, acompanhado por um EP de quatro faixas inéditas, a saber, “Uma Brasileira”, “Saber Amar”, “Luis Inácio (300 Picaretas)” e “Esta Tarde”. Só o sucesso de “Uma Brasileira”, parceria com Carlinhos Brown e com participação de Djavan, foi maior que o de “Severino” multiplicado por várias vezes.

Vinte e cinco anos depois, o disco permanece como uma tentativa bem sucedida de um artista compondo e expondo uma obra de arte que atenda às suas necessidades criativas, que signifique algo, que transcenda limites e desafie convenções. É algo muito raro hoje, tempo em que vivemos sob a influência de um sistema que se apropria de tudo e converte em cliques, downloads e indicadores que não significam, necessariamente, valor artístico e êxito. É quase um chamado à reflexão.

Certamente nada disso passou pela mente da minha versão 25 anos mais jovem, que escrevia “Os Severinos do Sucesso” original à mão, numa folha de papel com o escudo do Flamengo na barra superior direita da página. Não importa, estamos aqui para (re)lembrar de tudo e lançar luzes sobre detalhes esquecidos. O fato é que “Severino” é, sim, grande arte, parente direto de clássicos do rock nacional como “Selvagem?”, disco de 1986 da banda, no qual assumiu esta identidade brasileira e global, algo inédito para seu tempo e que permanece ousado até hoje. Sorte dos Paralamas. Aliás, sorte, não. Talento.

 

Em tempo: João Barone deu uma ótima entrevista sobre a importância do disco para a carreira do grupo e sua força 25 anos depois. Leia aqui

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

2 thoughts on “Os Severinos do Sucesso

  • 19 de março de 2019 em 17:21
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    Belo texto, para um álbum que permanece muito atual. Como sugestão, que tal uma reflexão sobre “Os Grãos”? O álbum é realmente pouco compreendido e traz – na minha opinião – algumas das músicas mais bonitas do rock nacional (em especial Não Adianta e Vai Valer).

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    • 19 de março de 2019 em 17:30
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      Boa pedida, André. Farei um texto sobre Os Grãos.

      Resposta

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