Os Paralamas do Sucesso – Qualistage, 17/12/22

 

 

O nome da turnê é “Paralamas Clássicos”. Ou seja: uma banda com 40 anos de história e sucessos, decide levar ao público aquilo que entende como sendo seu repertório mais consagrado e emblemático. Em termos de rock nacional dos anos 1980, não dá pra encontrar paralelo, seja por menor inspiração, seja por fatalidade. O destino levou Cazuza, levou Renato Russo e quase levou Herbert Vianna. Porém, no caso do paralama guitarrista e vocalista, quis o destino propor um desafio igualmente grande: como lidar com o novo Herbert que surgiu a partir do início dos anos 2000? Como manter os Paralamas no palco, ativos e atuantes? Não que fosse preciso, mas a apresentação de ontem, no Rio de Janeiro, foi mais uma resposta.

 

Se a produção de álbuns inéditos escasseou e caiu em termos de qualidade lírica, a banda aprimorou uma qualidade que sempre teve: a combustão do show ao vivo, o tesão pelo palco, a consideração e o carinho com os fãs, sempre oferecendo versões novas, interpretações diferentes, cuidando para que as gravações originais nunca sejam repetidas ou copiadas, como parece ser o mandamento maior do showbiz de alto impacto no mundo. Os Paralamas não estão nem aí para isso – são ratos de estúdio, adoram mexer nos arranjos, inserir detalhes, citações que, para o fã cascudo, soam como easter eggs do que vêm ouvido e fazendo nos últimos tempos. Já sessentões, Barone, Bi, Herbert, João Fera e o naipe de metais com Bidu Cordeiro e Monteiro Jr são uma corporação sonora ao vivo. Tem citação de baile de carnaval aqui, tem citação de Santana ali, tem Herbert murmurando “Exodus”, de Bob Marley pra cá, tem ele resmungando “Get Up Stand Up”, também de Bob, acolá, ou seja, é um show, um evento, com seu próprio tempo e espaço, mostrando pro público atento que “clássico” atravessa o passar dos meses, anos, volta modificado mesmo nunca tendo partido. Sacou?

 

O evento de ontem, dia 17 de dezembro de 2022, tinha vários significados. Era o último show da banda no ano, encerrando uma turnê contínua e presente em vários cantos do país, com alma lavada e dever cumprido. Era o aniversário da primeira apresentação do grupo numa emissora de rádio, no caso, a Fluminense FM, gêmea do trio, que o recebeu em fita cassete a partir de 1982 e, em 17 de dezembro daquele ano, também recebeu a própria turma, então iniciante, que tocou três músicas: “Encruzilhada Agrícola-Industrial”, “Patrulha Noturna” e “Vital e sua Moto”. Quarenta anos depois, “Vital” e “Patrulha” estavam presentes no show. E Barone avisou, antes do bis: “São vários quarenta anos: ano passado foram quarenta anos que a gente se conheceu, neste ano, quarenta ano que a gente toca junto, ano que vem, 2023, quarenta anos do primeiro disco”. Ou seja, são eternos quarenta anos.

 

 

 

 

E, falando em Rádio Fluminense, o show do Qualistage também teve um sentido extra: Maurício Valadares, lenda-viva do rádio carioca, dono do programa Rock Alive, depois Ronca Tripa, depois RoncaRonca, existente até hoje no formato de podcast, foi o responsável pela entrada paralâmica na Fluminense FM há quarenta anos. Tornou-se fotógrafo oficial do trio e, por conta de seu incansável trabalho de preservação da memória do rádio e da música no Brasil, lançou um álbum dos Paralamas extraído de uma apresentação do grupo no Ronca Ronca de 13 de outubro de 1999. O disco – lançado somente em vinil, numa tiragem curtíssima – estava à venda ontem e documenta os Paralamas na forma pré-Acústico MTV, gravado pela banda naquele mesmo ano.

 

Pois bem, a forma dos Paralamas hoje, ontem, é exuberante. Tocando por telepatia desde sempre, lembrando do perrengue que é segurar uma bandaça como esta apenas com uma guitarra e sem firulas eletrônicas, Herbert Vianna surge imparável e imorrível à frente do trio, com Barone assumindo sua camisa 8 na bateria e Bi Ribeiro, um dos maiores baixistas em atividade no país, ocupando a ponta-esquerda. Com Fera na contenção e o naipe de metais ocupando espaços, o time joga por música. O início leva o fã mais dedicado às lágrimas, numa sequência que tem “Vital e sua Moto”, “Patrulha Noturna” e “Cinema Mudo” em sequência, em versões com aqueles detalhes atualizados e sensacionais que mencionamos acima. A partir daí, o espectador tem a dimensão de quantas canções de sucesso os Paralamas gravaram em sua carreira, percorrendo um trajeto que sai de “Cinema Mudo”, de 1983, e chega em “Longo Caminho”, de 2002, o último disco composto pela banda antes do acidente com Herbert. Ou seja, é o fino do fino do repertório, com mais de trinta hits incontestáveis e alguns presentes para os fãs.

 

“O Amor Não Sabe Esperar”, canção fofinha com participação de Marisa Monte no original, presente em “Hey Na Na”, de 1998, está no setlist. Ainda que tenha feito sucesso na época, não é exatamente um clássico. O mesmo pode se dizer de “Vamo Batê Lata”, originalmente lançada em “Severino” e faixa-título do álbum ao vivo do grupo, de 1995, também não é exatamente um clássico, mas faz sentido num show com esta proposta. Este também é o caso de “La Bella Luna” (1994) e “Saber Amar” (1995), belas, lindas, mas não clássicos com ph de farmácia. Estas duas canções servem para lembrar como os Paralamas sempre tiveram a manha para compor e gravar “lentinhas”. Elas são primas-irmãs de “Romance Ideal”, primeira baladaça do grupo a fazer sucesso, lá em 1984 e de “Tendo a Lua”, de 1991, também presentes aqui. Ficaram de fora outras duas lindezas do mesmo naipe, “Me Liga” e “Quase Um Segundo”, de 1984 e 1988, respectivamente.

 

O setlist mostra que os Paralamas olham com carinho para vários discos de sua carreira, mas deveriam amar um pouco mais o sensacional “Bora Bora”, de 1988. Dele só a bombadíssima “O Beco” deu as caras, deixando o fã com saudade de “Uns Dias”, porrada raivosa anti-amor e da já citada “Quase Um Segundo”, todas hits absolutos em seu tempo, com pinta de “Clássico”. Também faltou a cíclica “Pólvora”, porrada de “Big Bang”, de 1989 e só. Não conseguimos detectar a falta de algum hit absoluto de seu tempo. Todas as outras estavam ali. Teve uma versão encrespada da minha favorita de todos os tempos dos Paralamas, “Mensagem de Amor”, teve detalhes maravilhosos nos vídeos de “Óculos” e “Alagados”, esta última, um colosso rítmico que não envelhece, abrindo espaço para imagens rápidas da vereadora Marielle Franco e citação de “Sociedade Alternativa”, de Raul Seixas. Teve a porrada de “Selvagem”, no manjado – e eficaz – medley com “Polícia”, dos Titãs e imagens mostrando cartazes com os dizeres “Vidas Negras Importam”, comprovando que os Paralamas sempre se preocuparam com viés social em suas obras, que, tristemente, ainda seguem atuais em conteúdo lírico.

 

Teve a dupla consagrada de covers portenhas, com as ótimas “Trac Trac” (de Fito Paez, lançada em “Os Grãos, de 1991), “Lourinha Bombril” (do grupo Los Pericos, lançada em “Nove Luas”, de 1994). Teve uma versão pesadíssima de “A Novidade”, com arranjo beirando o samba-reggae, cheio de efeitos sonoros muito bem colocados. Isso mostra o quanto o grupo ainda é capaz de se divertir com os dubs ao vivo, abrindo espaço para doideiras em “Será Que Vai Chover”, emendada com “Assaltaram a Gramática”, cheias de tecladices e ecos. Além delas, “O Beco” também abriu espaço para experimentações discretas no terreno do reggae, algo que a banda sempre fez.

 

Também estiveram presentes o medley “Você/Gostava Tanto de Você”, mostrando que o trio paralâmico foi pioneiro na valorização do funk nacional em plena era excludente do rock nacional oitentista. Teve “Ela Disse Adeus”, “Caleidoscópio”, “Aonde Quer Que Eu Vá”, “Uma Brasileira”, “Melô do Marinheiro” (com “Marujo Dub”) e um bis com SETE canções, iniciado com a invocadíssima “Perplexo” e encerrada com uma versão procedimental e muito adequada de “Meu Erro”, talvez a síntese da palavra “clássico” quando se trata de Paralamas do Sucesso.

 

Em meio a essas mais de duas horas de shows, me dei conta da sorte que tenho como fã assumido da banda. Ouvi “Vital e sua Moto” no ano em que foi lançada, 1983. Desde então, os Paralamas são meus amigos mais velhos, meus colegas de colégio, meus camaradas. Aquele tipo de amigo que a gente fica sem ver por muito tempo, mas que, quando reencontra, é como se tivesse visto na véspera. Vê-los ontem, soberanos, no palco, tocando em casa, para uma plateia emocionada, embevecida e totalmente conquistada há muito tempo, ainda mais com o tempero da ocasião e da empreitada conjunta com o Ronca Ronca, foi como desafiar o tempo, ou melhor, foi como entender que o tempo passa, mas que nos reserva espaço para ir e voltar com segurança. Neste caso, os Paralamas foram os melhores guias. Mais um show tecnicamente perfeito e que só demonstra a excelência do grupo. Uma porrada.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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