A glória de Messi, a aposentadoria de Galvão

 

 

 

Pode parecer herético de nossa parte juntar esses dois nomes no título do último texto que escrevemos sobre esta Copa do Mundo. E é. A ideia é, seguindo a tendência atual deste jornalismo marketeiro, provocar o leitor a já entrar nas primeiras palavras disposto a contradizer tudo o que lerá. Se o fizer, não tem problema, pelo menos teremos oferecido uma reflexãozinha. Porém, se concordar, será reconfortante para ele – e para nós – porque teremos quebrado uma lógica presumida de que os argentinos são seres lamentáveis, não-confiáveis, que nos odeiam e a tudo o que amamos. Logo, por conta disso, temos que odiá-los ou, como disse o ex-goleiro da Seleção Brasileira e do Flamengo, Julio Cesar, “não podemos ser hipócritas” ao torcer pela Argentina.

 

 

Mas torcemos. Aqui em casa, pelo menos. E vi vários amigos e amigas fazendo o mesmo, não só pelo fator Lionel Messi – de quem falaremos mais abaixo – mas pela justiça de ver uma seleção premiada pela superação e pelo ótimo futebol exibido. O técnico Lionel Scaloni, colocado como uma solução ao melhor estilo “tapa-buraco” no comando da Albiceleste, conseguiu reverter o fracasso do primeiro jogo, no qual a Argentina perdeu para a Arábia Saudita, em aprendizado e veio, jogo a jogo, mexendo na escalação de seu time, adaptando-o ao que precisava para enfrentar diferentes adversários. Deu no que deu.

 

 

Sobretudo torcemos porque somos sul-americanos. Há muito mais semelhanças entre nós e os argentinos do que entre nós e os franceses e europeus em geral. Brasil e Argentina têm histórias semelhantes, ex-colônias, exploradas por Portugal e Espanha, respectivamente, independentes quase na mesma época, um se transformou numa atrasada e patética monarquia, enquanto a outra virou república. Mas, juntas, vivenciaram o mundo do mesmo ponto de vista, alvo das mesmas agruras. Ao contrário do que se pensa, não há ódio entre argentinos e brasileiros, ou, pelo menos, não deveria haver. “Ora, mas são racistas” dirá alguém. E nós somos o quê, se votamos num racista declarado, num homofóbico declarado, num truculento assumido para presidir o país em 2018? Se a todo momento há notícias dando conta de ofensas raciais em vários cantos do Brasil? Se há a necessidade de explicar a importância das cotas raciais para a nossa classe média que se acha muito europeia? Faça-me o favor. Seria então a França tão adepta da igualdade racial que explorou e colonizou vários países africanos ao longo do século 19? E o Haití, cuja independência foi liderada por um negro, Toussaint L’Overture, que foi caçado pelo exército francês, o mesmo que defendia os ideais da Revolução Francesa? Ora, parem com isso.

 

 

E temos então, Messi. Aos 35 anos, seis deles como melhor jogador de futebol do mundo, quatro destes consecutivos, faltava a ele uma Copa do Mundo. Quis o destino que ela viesse numa partida épica como a final contra a França, disputada ontem, no Qatar. De um começo arrebatador, em que marcou dois gols no primeiro tempo, a Argentina viu sua vantagem se pulverizar com um pênalti dado para a seleção francesa e convertido por Mbappé, até então, sumido do jogo. No minuto seguinte, o mesmo atacante do PSG fez o segundo tento e tudo dava a entender que a Argentina perderia numa arrebatadora reação francesa. Não aconteceu e a partida foi levada para a prorrogação. Daí, um gol pra cada lado, com a França novamente dando a entender que venceria de forma heróica, sendo parada numa defesa milagrosa do arqueiro portenho Emiliano Martinez, que rebateu chute à queima-roupa dado pelo atacante Kolo Muani, a poucos minutos do fim do jogo. Nos pênaltis, ele pegaria outras duas cobranças francesas, decretando a vitória argentina.

 

 

Messi merecia, de fato, uma passagem épica por esta Copa. Autor de sete gols, escolhido o melhor jogador do torneio, esta – segundo o próprio – é sua última passagem pela Copa do Mundo, a última chance para conquistá-la. Se tivemos Pelé, Garrincha e Maradona no passado, três gênios incontestes do esporte, hoje temos Messi e Cristiano Ronaldo. O português deixou a disputa mais cedo, cabendo ao argentino a glória total. É bom lembrar que Messi já frequenta Copas desde 2010, quando foi levado para a África do Sul por Maradona. Viu seu time ser eliminado num acachapante 4 x 0 para a Alemanha. Quatro anos depois, no Brasil, viu novamente o selecionado germânico triunfar, desta vez na final do torneio. E viu, em 2018, seu time ser eliminado pela França. Ou seja, era agora ou nunca. Ter registros históricos de Messi erguendo a taça é mais do que fazer justiça, é trazer coerência ao mundo. Simples assim.

 

 

Desta forma, sobra o espaço para falar da aposentadoria do locutor global Galvão Bueno. Figura notória do jornalismo esportivo nacional, ele vem desde os anos 1970 forjando um estilo próprio, que foi aprimorado a partir de sua ida para a Rede Globo, no início dos anos 1970. Com suas narrações dos GP’s de Formula 1, Galvão tornou-se um companheiro das manhãs de domingo no Brasil, especialmente por sua afinidade com o tricampeão mundial Ayrton Senna. Mesmo depois da morte do piloto, Galvão já era uma figura consolidada no cotidiano nacional. Narrou as vitórias brasileiras nos Estados Unidos, em 1994, com o famoso bordão “é tetra, é tetra!!”, disparado na final contra a Itália. Atravessou todas as Copas desde então, presente seja no penta de 2002, seja no 7 x 1 de 2014, Galvão Bueno era mais interessante quando imitado, especialmente pelo humorista Marcelo Adnet.

 

 

Porque Galvão era mais um ator que um narrador. Nada errado nisso, é o que acontece quando jornalistas e comentaristas ficam muito tempo no ar. Seus bordões, sua narração carregando no erre, suas falas, suas opiniões dadas sobre a arbitragem, tudo isso mostra que Galvão era totalmente parcial quando se tratava de jogos da Seleção Brasileira. Sua postura de torcedor acrítico o fez ser importante aliado da CBF, aproveitando a habitual falta de engajamento jornalístico da Globo nessas questões. Galvão funcionou como um porta-voz da torcida absolutamente acrítica, paternalista, passadora de pano, pachequista. Nunca o vi criticando jogadores mimados, treinadores medíocres, atitudes equivocadas. Se muitos acham que suas narrações são insuperáveis, esta postura acrítica comprometeu a isenção e a relevância de suas opiniões. Bem, são escolhas.

 

 

Se Galvão se aposentou ontem da cobertura de eventos esportivos no exterior, quis o destino que seu maior rival, seu quase nêmesis, a Seleção Argentina de Futebol e o país Argentina, fossem triunfantes. Narrou, não só o tricampeonato argentino, como entrada definitiva de Messi no Olimpo dos jogadores do futebol mundial. Não coube defesa de neymar, de tite ou de qualquer outro brasileiro, mas, de um jeito ou de outro, Galvão tentava inserir a experiência nacional com o futebol como parâmetro, com o objetivo não-declarado, não-assumido, logo, passível de negação, de diminuir a conquista argentina. Em plena comemoração dos portenhos em campo, ele desferiu um “tenho a impressão de que a Argentina mereceu”. Ao lado dele, um dos mais lamentáveis comentaristas de futebol da TV mundial, Junior, e a promissora Ana Thaís Matos, debutando na função, mas já agindo como veterana na hora de elogiar a postura e a presença de Galvão.

 

 

Nós, que vemos o futebol como algo muito importante e que não aceitamos deturpações como o bordão galvaniano “ganhar é bom, ganhar da Argentina é muito melhor”, nos regozijamos com o feito. Pela justiça a Messi, pelo tricampeonato argentino e pela ironia (albi) celeste de impor a Galvão a sina de se aposentar sob um manto azul e branco platino. Que ele descanse e deixe seu espaço para novos profissionais, com novos estilos e menos canastrice.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

One thought on “A glória de Messi, a aposentadoria de Galvão

  • 20 de dezembro de 2022 em 01:05
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    Argentina neles!

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