Os 40 anos de “Stevie Wonder’s Journey Through “The Secret Life Of Plants”
É hora de reconhecer a beleza e a importância deste álbum de Stevie Wonder
O que é exatamente um “gênio”? Alguém cuja capacidade em uma área de atuação (ou em mais de uma, em casos bem raros) excede largamente às dos outros? Alguém que produz consistentemente novos modelos de pensamento e de ação que não foram concebidos por outros? Estas perguntas contêm definições comuns de “gênio”. Cabe adicionar uma nova pergunta: existem “gênios” ou existem pessoas que têm momentos geniais em quantidade suficiente para merecer tal qualificativo? A pergunta é mais do que justa porque a noção de “gênio” parece supor que o indivíduo assim chamado manifesta sua superioridade em relação aos demais em TODAS as facetas da vida. Sabemos que muitos indivíduos tidos como “gênios” foram disfuncionais no plano social, seja por condição mental delicada ou por pura arrogância. Por isso, definir “gênio” de forma relativa, como uma pessoa que tem um ou mais de um momento genial, parece mais aceitável do que recorrer ao sufocante absoluto que caracteriza a noção mais difundida deste substantivo.
Para ser reconhecido como “gênio”, um artista tem que demonstrar muitas vezes suas habilidades extraordinárias para um grande contingente populacional e, assim, mudar a percepção que as pessoas têm da arte e da vida em larga escala (ainda que isso aconteça depois que ele tiver morrido, como no caso de Van Gogh e de outros artistas que não tiveram sua produção celebrada em vida). No campo da música popular, o qualificativo é aplicado há muito tempo, seja de forma justificada, seja como instrumento de marketing. Assim como Ray Charles, Stevie Wonder é chamado de “gênio” desde menino por conta de sua incrível e precoce habilidade musical, que desconsiderou a deficiência visual e ampliou-se à medida em que ele se tornou adulto.
Uma das marcas definidoras do “gênio”, em qualquer acepção da palavra, é a criatividade que desafia convenções para manifestar-se plenamente. Ao seguir caminhos diferentes daqueles trilhados pela maioria, o “gênio” muitas vezes tem que lidar com a incompreensão e até com a hostilidade dos outros para realizar seus projetos artísticos. Desde que surgiu no cenário musical em 1961, ano em que gravou seus primeiros discos, Stevie Wonder raramente foi incompreendido ou hostilizado. Alguns comentaristas de música pop fazem críticas severas à produção do músico de meados dos anos 1980 para cá, mas muitas dessas críticas são resultado de preguiça mental, que prefere pegar atalho usando clichês interpretativos a analisar um objeto cultural de forma cuidadosa e justa.
O primeiro flanco que Stevie Wonder deixou aberto na década de 1970 (considerada a época de ouro da arte do cantor e compositor) para críticas negativas foi Stevie Wonder’s Journey Through “The Secret Life Of Plants”, o álbum mais polêmico, experimental, livre e ousado do artista. Stevie Wonder’s Journey Through “The Secret Life Of Plants” é também o produto fonográfico mais subvalorizado e, por isso, injustiçado do “gênio” da Motown.
Stevie Wonder’s Journey Through “The Secret Life Of Plants” foi lançado no dia 30 de outubro de 1979 nos Estados Unidos, três anos depois do blockbuster Songs in the Key of Life. Antes dele, o músico experimentou um período de sucesso crítico e comercial quase sem precedentes na história da música popular norte-americana. Uma medida do prestígio imenso de Stevie Wonder nos anos 1970 é o fato de que ele conquistou três vezes o Grammy de Álbum do Ano naquela década com Innervisions (1973), Fulfillingness’ First Finale (1974) e o já citado Songs In The Key of Life. Por conta deste êxito, a expectativa por uma nova coleção de gravações de Stevie Wonder estava no nível máximo em 1979. A Motown queria um novo sucesso financeiro, o público queria sons para dançar e amar, os críticos queriam a combinação irresistível de acessibilidade e sofisticação musical que fizera de Stevie o novo Duke Ellington. O único que queria algo diferente era o próprio Stevie Wonder.
Em 1973, foi publicado nos Estados Unidos o livro The Secret Life of Plants. Escrito por Peter Tompkins e Christopher Bird, o livro enfeixava histórias de experiências conduzidas por cientistas que queriam demonstrar que as plantas, assim como os animais, são dotadas de sensibilidade. A comunidade científica tratou de classificar rapidamente o livro como pseudocientífico, principalmente por conta da proximidade das conclusões de Peter Tompkins e Christopher Bird com a visão holística das religiões orientais. Mesmo assim, o livro rendeu um projeto de filme, um documentário dirigido por Michael Brown que seria lançado nos cinemas pela Paramount Pictures.
Michael Brown pediu a Stevie Wonder uma canção para o final do filme. Stevie aceitou a encomenda e entregou a canção. O diretor do filme, encantado com a colaboração de Stevie, decidiu fazer uma proposta ousada ao músico: pediu a ele que compusesse a trilha do filme inteiro. Entusiasmado com o projeto, Stevie Wonder topou. O que seria um fato trivial, um músico que decide fazer a trilha de um filme, se tornou um grande desafio, pois Stevie Wonder, como todos sabemos, é cego de nascença. Como um deficiente visual poderia produzir música para uma série de imagens cinematográficas? A solução encontrada foi engenhosa. Stevie Wonder ouviria em fita, no canal esquerdo do estéreo, a descrição das imagens do filme feita pelo próprio diretor; no canal direito do estéreo, o engenheiro de som Gary Olazabal contava o tempo de cada sequência, para que Stevie soubesse o quanto de música devia encaixar nela.
Inspirado pelo tema do documentário, Stevie Wonder abriu sua música como nunca havia feito antes. A trilha de The Secret Life Of Plants incluiu elementos de música de concerto, música japonesa, indiana e africana, e mais, jazz, soul e dance music eletrônica ao estilo de Giorgio Moroder (em “Race Babbling”). Aos temas instrumentais próprios de trilhas sonoras, Stevie acrescentou canções belíssimas como “Send One Your Love”, o único sucesso do álbum, “Power Flower”, “Come Back as a Flower”, “Black Orchid” e “Same Old Story”. Esta última comenta de modo lírico a rejeição às ideias avançadas sobre botânica do cientista indiano Jagadish Chandra Bose e do cientista negro norte-americano George Washington Carver. A afirmação de que as plantas têm sensibilidade como os animais feita por esses dois cientistas, ativos na segunda metade do século dezenove e na primeira do século vinte, foi recebida com frieza pelos colegas deles. “Same Old Story” toca inteirinha no filme The Secret Life Of Plants, em um clipe que estampa na tela a letra da canção.
A trilha de The Secret Life Of Plants urdida por Stevie Wonder é paradoxal. O álbum mais telúrico de Stevie Wonder é também o mais eletrônico. O músico teve à disposição um arsenal de instrumentos eletrônicos, alguns deles nunca usados antes em discos, para a confecção da trilha. O milagre de Stevie Wonder consistiu em criar com sintetizadores sons orgânicos e quentes que estivessem de acordo com o tema do filme. Os sons da natureza que perpassam o disco (ruído de chuva, de pássaros e de insetos) foram registrados e reproduzidos em um sistema pioneiro de samplers. Como de costume, Stevie Wonder tocou quase todos os instrumentos do disco, exceto em algumas faixas. A magia eletrônica de Stevie pode ser conferida na faixa “Ecclesiastes”, tema de inspiração barroca composto e executado pelo músico aos sintetizadores. Stevie Wonder’s Journey Through “The Secret Life Of Plants” foi um dos primeiros projetos fonográficos cujo processo de gravação foi totalmente digital.
Quando ouvimos Stevie Wonder’s Journey Through “The Secret Life Of Plants” de ponta a ponta, fica evidente que este foi o projeto que mais exigiu de Stevie Wonder como músico. É um trabalho ambicioso, de grandes proporções. Em 1979, o álbum duplo encontrou um ambiente cultural hostil. O zeitgeist da segunda metade dos anos 1970 foi completamente diferente do da primeira metade daquela década. Songs in the Key of Life, de 1976, foi o álbum testamento da diversidade da música pop da primeira metade dos anos 1970. A partir de 1977, o mundo pop foi partido em dois. De um lado, a disco music, que propunha a celebração do corpo ao ritmo frenético da batida de hi-hat e da cocaína; do outro lado, a negatividade do punk, que queria derrubar o edifício luxuoso do rock e construí-lo de novo no pique aceleradíssimo das anfetaminas.
Com seu jeitão progressivo, Stevie Wonder’s Journey Through “The Secret Life Of Plants” desagradou em cheio a maioria dos críticos e resenhistas musicais, que naquele momento estavam totalmente envolvidos com o projeto de “simplificação” do rock proposto pelo punk e pelo pós-punk. Para os consumidores regulares de música, a trilha oferecia alguns refrescos entre muitos momentos de ecletismo e de ousadia sonora. A má recepção do álbum pela crítica e pelo público (foi um fracasso total de vendas) foi um choque para Stevie Wonder. Dali em diante, o cantor e compositor desistiu de projetos mais radicais em nome de um som mais comportado e adequado ao mercado (sem abandonar totalmente a inventividade que sempre lhe foi própria). Todos os produtos musicais de Stevie Wonder realizados a partir de 1980 tiveram o fracasso de Stevie Wonder’s Journey Through “The Secret Life Of Plants” como baliza.
Além dos fatores que elencamos, a rejeição ao disco de Stevie Wonder também pode ser explicada pelo fato do filme sequer ter sido lançado nos cinemas dos Estados Unidos. Quase ninguém assistiu ao documentário The Secret Life Of Plants. O filme desapareceu durante décadas. Muitos achavam que ele nem existia. Se aqueles que criticaram duramente o álbum à época do lançamento tivessem visto o documentário, talvez a trilha de Stevie Wonder fosse recebida com mais boa vontade. Para os que ainda têm restrições ao álbum quatro décadas depois do lançamento dele, recomendo que procurem pelo documentário no YouTube. O filme é repleto de imagens deslumbrantes. E a trilha sonora, feita por um deficiente visual, está plenamente de acordo com o que se vê na tela. Stevie Wonder’s Journey Through “The Secret Life Of Plants” é um milagre, um verdadeiro momento genial de Stevie Wonder.
Zeca Azevedo é. Por enquanto.
Ex-ce-len-te!!!
Nem sonhava que o Stevie tinha um álbum assim, hoje revisando sua discografia fiquei curioso ao ver o título.
Quando fala em algo que desagrada a crítica normalmente a mim agrada.
☺