Os 40 anos de “Security”, quarto álbum de Peter Gabriel

 

 

 

Lançado há 40 anos, em 5 de setembro, Peter Gabriel 4 – ou ‘Security’, como foi intitulado nos EUA – é, obviamente, o quarto álbum do cantor britânico. Se no terceiro disco as influências da música estrangeira, como a africana e a brasileira, ainda eram incipientes, neste LP Gabriel embarca totalmente nessas sonoridades. Lançando mão de ritmos e timbres do que a indústria fonográfica convencionou chamar de world music, Gabriel concebeu um dos melhores discos – senão o melhor – de toda a sua discografia e não seria exagero dizer que seu auge criativo se deu justamente aqui. Seguindo um caminho que já havia sido trilhado em parte no disco anterior, o ex-Genesis apresentou um álbum denso e obscuro pelo qual passeia por tribos indígenas, rituais africanos, repressão e diversos outros temas.

 

 

A primeira faixa, ‘The Rhythm of The Heat’, apresenta o clima que estará presente no decorrer da audição. Com uma percussão tribal e os gritos desesperados de Gabriel, a canção evoca suspense e urgência. Com o auxílio de sintetizadores, samples e do baixo de Tony Levin, a gravação é construída de modo a situar o ouvinte em um típico ritual africano. Todo o andamento ocorre lentamente até que descambe numa explosão de tambores, gerando um ritmo impactante e persuasivo; desta maneira, a canção tenta replicar na forma de música os relatos de Carl Jung durante sua visita à África. O famoso psicanalista revelou ter se sentido “possuído” pelo ritmo do ritual de uma tribo africana ao qual ele observara, experiência a qual inspirou Gabriel na concepção da canção.

 

Em seguida somos apresentados àquela que é a candidata a melhor canção do álbum: mantendo a tradição de trabalhar com ritmos nativos, ‘San Jacinto’ é inspirada num ritual indígena de uma tribo localizada na cordilheira homônima localizada na Califórnia. A canção surgiu após Gabriel conhecer um índio Apache e o relato deste sobre o ritual de provação a qual todo jovem é submetido ao completar 14 anos de idade. O jovem indígena é levado até o alto da montanha por um xamã e lá é picado por uma cascavel. Após entrar em contato com o veneno da picada, o jovem é obrigado a retornar sozinho para a tribo. Se sobreviver, é considerado um herói; se morrer, será esquecido. A canção também versa sobre o choque cultural entre a comunidade indígena e a urbana. O cantor explica a letra da seguinte forma:

 

“É a história do que ele (nativo) encontrou ao voltar e o que os EUA fizeram à sua cultura.”

 

Tão fascinante quanto a letra, é a melodia que a acompanha. Utilizando novamente de um sample – que aqui são sons de sopros em um tubo de metal que Gabriel e David Lord, produtor e engenheiro de som, encontraram numa visita a um ferro velho – a base da faixa é composta teclados intrincados que criam uma melodia a qual remete ao som ameríndio. Conforme o compositor explica:

 

“(…) musicalmente eu também estava tentando criar em cima do que tinha começado no álbum anterior com uma abordagem de ‘sistemas’ e temas que se repetem.”

 

Percebam como o artista conduz sem pressa o ouvinte até o refrão, onde se dá o clímax da faixa. Com a ajuda dos sintetizadores, Gabriel constrói um clima de mistério e melancolia que, ao chegar ao refrão, atinge ares de dramaticidade. Tão simples quanto encantadora, esta é uma das melhores composições do cantor.

 

‘I Have The Touch’ é uma faixa um pouco mais agitada que as anteriores. Com um leve aceno pop, possui um ritmo cadenciado, mas levemente dançante – proporcionado pela bateria eletrônica e pelo baixo do brilhante Tony Levin, além da guitarra discreta de David Rhodes e teclados típicos da new wave oitentista. É uma canção que trata sobre a necessidade de contato, mais especificamente do toque físico. Gabriel explica:

 

“‘I Have The Touch’ era uma música sobre contato. Comecei a ler essas coisas sobre o quão importante o toque é. Está claro que o cérebro dos bebês se desenvolve de acordo com a quantidade de contato físico que eles recebem; a pele é frequentemente subestimada como um organismo. Então, eu estava olhando várias abordagens com o toque”.

 

Interessante notar que já no início da década de 80 Peter Gabriel abordava a necessidade do contato físico. Hoje é uma de suas canções mais pertinentes para a atualidade, tendo em vista o distanciamento físico – e emocional – que a tecnologia suscita a todos nós. Em tempos de pandemia, em que o isolamento social (e físico) é aconselhável, é quase automática a identificação com a canção.

 

O lado A encerra com ‘The Family and the Fishing Net’. Quebrando o clima da faixa anterior, este é um dos casos em que a letra da canção é melhor do que a melodia que a acompanha. Retomando os timbres africanos, a faixa é repleta de vocalizações desnecessárias (que funcionaram muito bem nas duas primeiras faixas, mas não aqui), sendo um tanto enfadonha e longa demais. É uma das faixas mais experimentais do álbum, entregando um resultado abaixo do esperado e sendo responsável pelo único ponto baixo do LP. A temática aborda os dissabores da vida conjugal, tema ao qual Gabriel retornaria futuramente numa canção que seria melhor trabalhada, ‘Blood of Eden’.

 

O lado B inicia com o maior hit do disco, ‘Shock The Monkey’, uma faixa assumidamente pop e dançante que gerou um clipe de alta rotação na MTV à época de seu lançamento. Peter Gabriel explica que apesar do que aparenta, não se trata de uma canção sobre o direito dos animais, mas sim uma metáfora sobre o ciúme. Animada e empolgante, com os sintetizadores compondo a base, os destaques vão para a guitarra de David Rhodes e Tony Levin tocando no Chapman Stick (um híbrido de baixo e guitarra).

 

‘Lay Your Hands On Me’ é a faixa em que, diferente de ‘The Family and the Fishing Net’, o experimentalismo foi bem sucedido. Utilizando novamente samples (que aqui são os sons de um pedaço de concreto sendo arrastado), Gabriel cria um ambiente sonoro de obscuridade e tensão para, nas palavras dele, tratar sobre “confiança, cura e sacrifício”. Ressalta-se o clima enigmático causado pelo backing vocal que não canta, e sim recita a letra. Destaque também para os teclados que no meio desse ambiente claustrofóbico trazem um clima de leveza, lembrando até mesmo um assovio. Algo que também merece ser notado é o uso certeiro do silêncio que precede a percussão intensa e pesada ao final. Peter Gabriel sabe utilizar o som – ou melhor, a ausência dele – para causar surpresa no ouvinte.

 

Sempre conectado com os direitos humanos, Peter Gabriel costuma dar voz às vítimas de torturas e massacres motivados por razões políticas. No disco anterior, a canção ‘Biko’ já tratava sobre este tema e aqui ele é retomado em ‘Wallflower’. É uma canção que Gabriel escreveu após ler um panfleto da Anistia Internacional que informava sobre a situação e o tratamento desumano ao qual os presos políticos de regimes ditatoriais da América Latina eram submetidos, mais especificamente ao regime ditatorial do chileno Augusto Pinochet.

 

Singela, triste e bela; é uma faixa sublime regida por um piano que começa lentamente com flautas que remetem à música latino-americana e vai crescendo até chegar aos versos finais em que Gabriel emprega toda sua dramaticidade. Apesar da temática pesada, o compositor tenta trazer uma mensagem de esperança Trata-se de um dos pontos mais altos do álbum.

 

 

Cabe aqui uma conexão com “They Dance Alone”, canção de Sting presente no segundo álbum do cantor, …Nothing Like the Sun, lançado 5 anos depois, e que trata da mesma temática. Ambos os artistas se apresentariam em 1988 no concerto “Human Rights Now!” organizado pela Anistia Internacional.

 

 

Encerrando o LP, temos a animada e festiva ‘Kiss of Life’. Com uma batida rítmica e dançante, apresenta uma temática romântica e teclados que lembram muito o axé brasileiro. Um tanto subestimada e esquecida no repertório de Peter Gabriel, a faixa encerra o álbum em grande estilo e mostra como o artista é um grande captor de influências de ritmos estrangeiros e o porquê de ser considerado um dos maiores expoentes da world music.

 

Um dos maiores destaques da discografia de Peter Gabriel, este quarto álbum é o aperfeiçoamento de ideias que o cantor já vinha trabalhando e que aqui atingiram seu ápice. Discos posteriores apenas seguiriam o estilo que foi desenvolvido neste álbum. Apresentando grandes canções, sendo inclusive três delas – ‘The Heat’ (‘The Rhythm of The Heat’), ‘Under Lock And Key’ (‘Wallflower’) e ‘Powerhouse at the Foot of the Mountain’ (‘San Jacinto’) – reaproveitadas e readaptadas no disco Birdy (1985), trilha sonora do filme Asas da Liberdade (1984), Security é a afirmação de Peter Gabriel como um cantor e compositor criativo e talentoso.

 

A exemplo do terceiro disco de Gabriel, este LP também ganhou uma versão alemã e toda a sonoridade aqui desenvolvida seria fundamental para a realização do seu grande sucesso comercial, So, lançado quatro anos depois. A turnê de Security ainda geraria o excelente álbum Plays Live, lançado em 1983, apresentando ‘The Rhythm of the Heat’, ‘I Have the Touch’, ‘The Family and the Fishing Net’, ‘San Jacinto’ e ‘Shock the Monkey’, sendo o primeiro disco ao vivo da carreira de Peter Gabriel.

 

Este texto foi publicado originalmente no extinto portal Quinquilharia.

 

 

Gabriel Martins

Colecionador de CD’s desde os 14 anos, descobri o amor à música com o Tears For Fears e a paixão pela brasilidade com Marcos Valle. Apesar de ser formado em Direito, minha vocação se encontra no jornalismo musical.

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