Orville Peck traz o verdadeiro country alternativo

 

 

 

Orville Peck – Stampede
51′, 15 faixas
(Warner)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

 

Country music, via de regra, cheira a conservadorismo. E machismo. Não por acaso, há alguns meses, Beyoncé lançou “Cowboy Carter”, um álbum inteiro em que se permitiu entrar nos modelos estéticos do country e, sendo ela uma mulher negra, subverteu boa parte desses signos que dão a cara sisuda do estilo. Agora vem Orville Peck e termina de demolir completamente os alicerces dos cowboys e cowgirls mais tradicionais. Na verdade, Orville está aí desde 2019, quando lançou seu primeiro álbum, “Pony”, cantando atrás de uma longa máscara, mas usando todos esses símbolos tão caros ao country – roupas, jeitos de corpo, chapéus, violão – e assumindo uma postura eminentemente gay. Originário da África do Sul e autodidata, Orville Peck é, certamente, a figura mais interessante do estilo em décadas e a única a realmente colocar em xeque todo este imaginário adjacente e bundão. Mais que isso: ele tem grande apreço pela música pop em geral e, depois de lançar outro álbum em 2022, “Bronco”, ele chega ao terceiro trabalho bancando nada menos que um disco duplo de quinze faixas colaborativas, contando com presenças do naipe de Willie Nelson, Allison Russell, Kylie Minogue, Beck e Elton John, numa empreitada que vai arrepiar os cabelos brancos dos conservadores ianques. Conheça então este ótimo “Stampede”.

 

É fato que a country music já vem sendo alvo de evoluções estética consideráveis desde que Ray Charles lançou seu clássico álbum “Modern Sounds In Country Music” no início dos anos 1960, mostrando que negros podem – e devem – ouvir e fazer este estilo musical. No fim daquela década, Glen Campbell, um dos maiores cantores da história da música popular, lançou a emblemática “Rhinestone Cowboy”, falando sobre a vida nada glamurosa de gente que vive sob o signo do country e precisa envergar tal simbologia, quando, na verdade, é totalmente ferrada pela injustiça da cidade grande e tudo mais. Mulheres como Dolly Parton contribuíram para oxigenação do country nos anos 1960/70, sem falar de gente como Emmylou Harris, Bobby Gentry, Johnny Cash, Waylon Jennings, que inseriram elementos da poesia rock e beat na cantilena habitual do estilo, além do próprio Bob Dylan, que visitou a fundo os elementos country em momentos particulares de sua carreira, sendo “Nashville Skyine”, de 1969, um ponto alto desse flerte. Misturaram elementos do estilo à soul music e até o punk rock, do qual emergiu o “Alt.Country”, nos anos 1990. Sendo assim, mesmo estando numa longa e dourada tradição de desafiantes do sistema, Orville acrescenta elementos até então insuspeitados, especialmente por conta de sua postura.

 

Quem produz o álbum é Diplo, outra insolência com os tradicionalistas, visto a fluência do sujeito com os elementos eletrônicos e dançantes. Mesmo assim, seria meio óbvio enfiar beats aqui e ali em meio a estruturas de canções tradicionais. O que temos então é uma produção que privilegia o talento dos envolvidos, procurando dar toques cirúrgicos aqui e ali, que fazem toda a diferença. Por exemplo, a faixa mais surpreendente e sensacional presente aqui, “Mienteme”, tem a cantora ítalo-mexicana Bu Cuarón, e um arranjo insere ritmos quebrados e mexicanices na paisagem e o resultado é muito, muito bom. A colaboração com o trio Midland em “The Hurtin’ Kind” também é ótima, pouco óbvia, empoieirada, misturando low profile com grandes coros repetidos em grandes espaços. A sensacional Allison Russell aparece em “Chemical Sunset”, misturando seus vocais perfeitos ao registro grave de Orville, reeditando os grandes duetos homem-mulher do estilo.

 

A colaboração com Beck, “Death Valley High” segue muito os parâmetros que o cantor e compositor novaiorquino tornou seus nos anos 1990, mas ainda fazem muito bonito no meio desse contexto de mudança. Willie Nelson, invencível pelo tempo, aparece com a emocionante “Cowboys Are Frequently Fond Of Each Other”, com Orville fazendo seu melhor como cantor mais tradicional contrastando com o registro cada vez mais áspero e rouco de Willie. O ótimo Natheniel Rateliff aparece na solene “Conquer The Heart”, com um clima de produção de Phil Spector, enquanto Elton John surge com “Saturday Night Is Alright For Fighting”, cujo arranjo original foi preservado, mas que se insere totalmente no clima do álbum e do que ele pretende. Kylie Minogue e o próprio Diplo surgem em “Midnight Ride”, Noah Cyrus em “How Far Will We Take It?” e a própria “Rhinestone Cowboy”, hino da modernidade country, encerra o percurso de quinze faixas, trazendo TJ Osborne e Waylon Payne.

 

“Stampede” é um discaço. O próprio Orville já declarou em entrevistas que ele simboliza a aquisição de confiança ao longo dos últimos anos e aponta para o futuro. A máscara segue no visual do sujeito, mas está mais reveladora, curta, talvez próxima de sair de cena. Com ou sem ela, Orville Peck é sensacional e merece ser conhecido.

 

 

Ouça primeiro: o disco todo é sensacional.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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