Esperanza Spalding vive e renasce Milton Nascimento
Esperanza Spalding & Milton Nascimento – Milton + esperanza
60′, 16 faixas
(Concord)
Este álbum é um dos grandes acontecimentos de 2024. Não apenas por sua ótima qualidade musical mas por fazer uma homenagem justíssima à música de Milton Nascimento, agora devidamente aposentado dos palcos. Esperanza Spalding é uma das grandes musicistas de sua geração – baixista de talento e ótima cantora e compositora. Tem uma visão aberta do jazz e de como ele deve se misturar a outros gêneros de música popular, especialmente o funk setentista e a música folk, campo no qual ela tem especial apreço pela música brasileira. Esperanza já fez versões de standards brasileiros como “Inútil Paisagem” (Tom Jobim), mas é com a música de Milton que ela parece encontrar especial afeto e afinidade. Já fez uma versão bela da mais bela “Ponta de Areia”, em “Esperanza” (2008), seu segundo álbum e, no terceiro, “Chamber Music Society” (2010), ela cantou com o próprio Milton em sua autoral “Apple Blossom”. Esperanza também se apresentou com Bituca ao vivo no Rock In Rio de 2011 e sua amizade só fez crescer ao longo do tempo. Agora, com quase vinte anos de carreira, Esperanza convidou o veterano cantor e compositor brasileiro para um álbum que é meio homenagem, meio autoral, meio de covers, que cumpre lindamente a missão de juntar passado e presente para chegar num futuro. Sendo assim, temos “Milton + esperanza”.
Em termos conceituais, este álbum lembra muito o que Elvis Costello fez com Allen Toussaint em “The River in Reverse” (2005), com Spalding mergulhando no vasto repertório de Nascimento, reimaginando clássicos e compondo novas peças inspiradas em seu universo musical. Ele é muito mais um álbum dela do que um tributo a ele, mas sua presença, já octogenário, dá um tom solene e emocionante. É uma linda homenagem a Bituca, feita da melhor maneira possível, abrindo um espaço privilegiado para que ele, o homenageado, participe como um co-criador da própria homenagem. É generoso, belo e de um bom gosto extremo, verdadeiro diálogo intergeracional, onde o novato inspira o veterano a criar novas obras.
Milton, é bom que se diga, é um ícone da música brasileira. Ao longo de seis décadas de atividade, ele construiu uma carreira marcada pela experimentação e pela fusão de diversos gêneros. Sua música, rica em melodias e harmonias complexas, reflete a diversidade cultural do Brasil. Em “Milton + esperanza”, a parceria entre os dois artistas resulta em um álbum que é, ao mesmo tempo, homenagem e reinvenção. Spalding, acompanhada por sua banda, reinterpreta clássicos como “Cais” e “Outubro” com arranjos modernos, sem perder a essência das composições originais. A cantora norte-americana demonstra um profundo conhecimento da obra de Milton, incorporando elementos do jazz, do funk e da música brasileira em suas versões. Além destas, outras colossais criações de Milton ganham nova vida: “Morro Velho”, até hoje uma de suas mais comoventes canções, ganha arranjo minimalista com cello e vocais múltiplos, enquanto “Saudade dos Aviões da Panair”, um clássico de “Minas” (1975), volta do passado com participações de Lianne LaHavas e Tim Bernardes, numa interpretação reverente, quase religiosa.
Como um bom álbum de jazz, “Milton + esperanza” investiga e se apropria de standards e composições alheias. Além dos originais de Milton, há duas sacadas de gênio: uma releitura maravilhosa de “A Day In The Life”, em que o tom experimental do original dos Beatles é substituído por fluidez jazz à toda prova. Para uma canção que já foi reinterpretada várias vezes, esta versão ficou linda. E temos uma inesperada “Earth Song”, do momento menos interessante da carreira de Michael Jackson, aqui transformada por um milagre eletroacústico, com vocais voadores e múltiplos e uma participação estelar do próprio Milton Nascimento, mostrando versatilidade mesmo em meio às restrições que sua voz sofreu com o passar de tempo. Mas o álbum vai muito além das releituras, e conta com composições originais de Spalding inspiradas em Nascimento, como “Wings For The Thought Bird” e “Get It By Now”, que revelam a influência do mestre brasileiro, tanto em termos harmônicos como melódicos. A colaboração com Paul Simon em “Um Vento Passou” é outro destaque, reunindo dois grandes nomes da música mundial em uma canção emocionante.
Em suma, “Milton + esperanza” é um álbum que celebra a música brasileira e a obra de Milton Nascimento. A jovem e talentosa Esperanza Spalding demonstra um profundo respeito e admiração pelo veterano, criando um trabalho que agrada tanto aos fãs de ambos os artistas quanto aos novos ouvintes.
Ouça primeiro: “Earth Song”, “Outubro”, “Cais”, “A Day In The Life”, “Um Vento Passou”, “Saudade dos Aviões da Panair”, “Morro Velho”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.