O Rei da TV é surreal, sensacional e corajosa

 

 

Pode parecer impreciso, mas talvez o álbum “Love”, no qual Giles Martin, filho do produtor George Martin, reimagina canções dos Beatles, seja um bom exemplo para falar de “O Rei da TV”. Assim como no disco, a série parte de fatos e pessoas reais, mas, no meio do caminho, alterna realidade e ficção, obtendo um resultado que, ao mesmo tempo, parece e não parece verdade. Seja como for, o que está contido nas duas temporadas da produção da Gullane Entretenimento, é um pequeno tesouro de imaginação e relato dos bastidores da TV brasileira antes dos streamings e serviços de assinatura dominarem a cena. Era uma época em que as alternativas disponíveis eram poucas e não restava muita escolha na hora de escolher o que ver. Sabedores disso, produtores, diretores e donos de emissora, como Silvio, detinham poder quase divino.

 

 

Claro, Silvio não é apenas isso. O “Homem do Baú” é dono de várias empresas, bancos, e, mais que isso, uma figura colada irreversivelmente no inconsciente coletivo de umas quatro ou cinco gerações de brasileiros. Sua presença nos domingos em frente à telinha por décadas tornou-se uma referência inescapável, algo quase além do bem e do mal. O sorriso imutável, as brincadeiras de gosto duvidoso, as inúmeras derrapadas misóginas, racistas, elitistas, contraditórias, tudo isso forjou essa persona complexa que é Silvio Santos e, claro, interpretá-lo não é tarefa fácil. Por isso, a série trouxe três artistas para dar conta do recado. José Rubens Chachá faz o Sílvio dos anos 1980 em diante, Mariano Mattos interpreta o apresentador dos vinte aos quarenta, enquanto Guilherme Reis tem a dura tarefa – na qual se sai muito bem – de mostrar o empresário com quinze anos, iniciando sua carreira como camelô no Centro do Rio.

 

 

É bom que se diga: “O Rei da TV” não tem qualquer compromisso documental. Assim como “Love”, muitas vezes a série propõe novas formas de tomar ciência de fatos. Neste propósito, ela mexe com intervalos temporais, condensa várias pessoas reais em um personagem fictício, enfim, ela dá ao espectador a chance de entrar numa dimensão alternativa, que é familiar por conta das citações reais. Sendo assim, estão presentes momentos memoráveis da trajetória de Silvio e do próprio SBT, como, por exemplo, quando o apresentador foi mandado “tomar no c*” por uma criança, após a “piada do bambu” ou a notória dança da cantora Gretchen com o ator Jean-Claude Van Damme no palco do Domingo Legal, atração que era comandada pelo apresentador Gugu Liberato. Aliás, a caracterização destes personagens adjacentes – Gugu, Sergio Mallandro, Sonia Lima, Pedro de Lara, Elke Maravilha, Manuel de Nóbrega, além da família de Silvio, especialmente a esposa, Iris (Leona Cavalli, ótima) e as filhas, tudo ajuda a compor este painel que cisca no terreiro do surrealismo muitas vezes.

 

 

A primeira temporada alterna duas linhas temporais. A primeira, em 1988, quando Silvio é diagnosticado com um pólipo na garganta e vive dias infernais em que o futuro da emissora está em xeque, e outra, que mostra o início da carreira do apresentador, com os primeiros dias de camelô, no Rio e sua fase como apresentador da “Caravana do Peru que Fala”, já em São Paulo, tempo em que ele conhece Manuel de Nóbrega (Cacá Carvalho), inicia suas atividades como dono do Baú da Felicidade, contando também com a presença de Stanislaw Pontes, um ex-fiscal da Receita, que é “convencido” por Silvio a trabalhar com ele na empresa. Pontes nunca existiu, mas representa vários executivos e parceiros empresariais de Silvio, sendo vivido por Leandro Ramos e Emilio de Mello. Já na segunda temporada, vemos a história a partir da candidatura malfadada do empresário à Presidência da República, em 1989 e a subsequente fase do “novo SBT”, na qual a emissora passou por um processo de reinvenção buscando alcançar a Globo na corrida pela audiência. Ao mesmo tempo, vemos, em 2010, Silvio lidando com o escândalo do Banco Panamericano, quando houve um desfalque de bilhões de reais, do qual ele jamais admitiu ter conhecimento.

 

 

A reconstituição histórica é ótima, o roteiro, escrito por André Barcinski, não poupa Silvio de situações grotescas e insólitas, mostrando como o apresentador é uma pessoa de caráter duvidoso e contraditório. O grande mérito da produção é não permitir que os atores imitem os trejetos do Silvio Santos real, mas que o caracterizem em seus momentos mais humanos e falíveis. Sendo assim, é extremamente interessante ver uma figura tão estudada como ele em momentos de traição conjugal, conduta duvidosa, aliciamento de pessoas, tráfico de influência em todos os níveis, sem falar na postura de “esconder” a primeira esposa – Cidinha – da mídia televisiva, buscando passar uma imagem de disponibilidade para as fãs. Dois episódios são antológicos: Na primeira temporada, é primoroso o que Silvio viaja até o Rio de Janeiro com Gugu Liberato para tentar reverter sua contratação junto à direção da Globo, numa reunião com Roberto Marinho e Boni (chamado de “Rossi” na série). O outro momento dourado está na segunda temporada, quando, no auge da guerra pela audiência, as duas emissoras – SBT e Globo – alternam baixarias hediondas nos programas Domingo Legal e Domingão do Faustão, com direito aos casos – reais – do sushi erótico, do Latininho, da Banheira do Gugu e da já mencionada aparição de Van Damme e Gretchen.

 

 

Não percam de jeito nenhum e lembrem-se: é uma adaptação ficcional hilária e corajosa, não um documentário. O descontentamento da família de Silvio – e dele próprio – com a série são ótimos sinais de seu valor.  Sem falar na ironia máxima que é ver uma produção da Disney (o Star+ pertence ao grupo) enfocando a vida de Silvio Santos.

 

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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