Tempestade de guitarras do deserto

 

 

 

 

Mdou Moctar – Funeral for Justice
39′, 9 faixas
(Matador)

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

 

 

 

Você conhece o Níger? Oficialmente chamado de República do Níger, colonizado pela França, situado na beirada do Deserto do Saara. Não confundir com a Nigéria, ex-colônica britânica, situada na África Ocidental, na costa do Atlântico. Pois bem, é do Níger que vem Mdou Moctar, um guitarrista, cantor e compositor tuareg, povo da etnia bérbere, que vive mais à vontade nas proximidades das areias do deserto do Saara. Dizem que o escritor Frank Herbert os usou como inspiração para criar os Fremen, o povo da areia de Duna, certamente um referencial que está na moda. Pois bem, Mdou Moctar é o nome da banda liderada por Mahamadou Souleymane, cuja data de nascimento é imprecisa, dia 16 de agosto de 1984 ou 1986. Ele é um dos mais interessantes praticantes de uma revisão estética da “música tuareg de guitarras”, que, após ser descoberta pelos ouvintes do Ocidente europeu, foi rebatizada de “Desert Blues”, certamente um belo rótulo. Seu sexto álbum, “Funeral For Justice” é, por assim dizer, uma das mais bem dadas porradas musicais e líricas na opressão colonialista exercida por povos europeus na África. No caso, sobrou para a França, colonizadora do Níger e de quase todo o norte do continente africano, ocupando ali quase todo o território bérbere – Marrocos, Tunísia, Argélia e Níger, que fica um pouco mais abaixo. A banda esteve no C6 Festival do ano passado por aqui e deixou o público de queixo caído.

 

“Funeral For Justice” é o segundo trabalho de Mdou Moctar a sair pela Matador Records. Assim como o anterior, “Afrique Vitime”, de 2021, ele é marcado pela rebeldia e pela inquietação política. As canções giram em torno dos maus-tratos sofridos pelo Níger e pela luta constante do povo tuaregue. A barreira linguística pode dificultar a compreensão total das letras, mas a dor, a raiva, a união e a tristeza transmitidas nelas são inconfundíveis. E o meio musical encontrado para fazer chegar esses sentimentos ao público que não compreende o que está sendo dito, vem na forma de hard rock, rock clássico, cantos rítmicos, blues e baladas, dando ao álbum uma sonoridade que parece nascer do fundo do coração. É implacável desde o início, um verdadeiro triunfo e curiosamente viciante.

 

Ainda que as nove faixas sejam absolutamente sensacionais e emocionantes, três delas se destacam fortemente em relação às demais. Em “Tchinta” é impossível não se impressionante com a força do poderio vocal. Os ritmos e notas alongadas, extraídas das guitarras, devidamente acompanhadas por pratos persistentes criam um pavimento em que, mais adiante, passearão solos de guitarra, que, parecendo improvisados, acenam para o rock e a psicodelia setentistas. Parece velho, mas é terrivelmente urgente e atual. O single “Oh France” já é uma das canções mais bacanas do ano, dotada de uma origem revolucionária que critica a forma como a França tratou o Níger no passado. A letra lamenta o desaparecimento de uma língua, mas paradoxalmente, a música é incrivelmente se mostra animada e divertida. Esse contraste entre a tristeza avassaladora e a energia “alegre” do arranjo deixa o ouvinte desconcertado, olhando fascinado para algo que não consegue compreender completamente.

 

“Modern Slaves” e a última faixa do álbum e a mais curiosa. Tem um andamento que poderia ser considerado próximo do rock psicodélico mais hippie do fim dos anos 1960, evocando psicodelia e viagens mil, mostrando uma paz que não aparece em nenhum momento de “Funeral For Justice”. É como se a certeza da mensagem transmitida, da oportunidade de contar sua história, falar sobre o passado trouxesse esta sensação de … paz. Alguém na crítica internacional disse que lembra algo que poderia ser da fase pré-glam do T.Rex e parece, de fato.

 

“Funeral for Justice” exige sua atenção total. Não é música de fundo nem algo para se ouvir distraidamente. É um álbum para ser apreciado do início ao fim, repleto de linhas instrumentais complexas, mudanças de tom inesperadas e uma beleza indiscutível. Se você é um desses ouvintes de rock clássico que não abre mão das velhas bandas de sempre, dê uma chance a esta tempestade de guitarras vinda do Saara. É algo que vai te atingir em cheio e, como diz o velho Maurício Valadares, “desorientar orientando”. Ouça. Passe adiante.

 

 

Ouça primeiro: “Modern Slaves”, “Tchinta”, “Oh, France”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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