Coringa é um filme do nosso tempo

 

Em primeiro lugar, aqui vai um aviso de amigo: “Coringa” é um filme cheio de viéses. O menos interessante deles, pasmem, é o de pretender narrar a ascensão do arquirrival do Batman, deixando de ser o comediante fracassado e enlouquecido, Arthur Fleck, para se transformar no caótico Coringa. Há tantas possibilidades de interpretação e tantas nuances no longa de Todd Phillips, que eu recomendo fortemente que esqueçamos a mitologia de Gotham City e tudo que a envolve.

 

Melhor dizendo: não esqueçamos totalmente. Que tal a gente entender a enorme e suja cidade como a sua musa inspiradora, Nova York, principal cidade dos Estados Unidos? E se, levando em conta o recorte temporal do filme – 1981 – lembrarmos que esta época marcou a opção do mundo ocidental pelo neoliberalismo, com Reagan e Thatcher dando as cartas no cenário internacional, dando carta branca para as grandes corporações se tornarem mais fortes que os governos? E se, ainda por cima, lembrássemos que o foco desta política econômica envolvia, diretamente, privatizações, desemprego e achatamento do serviço público? Pois este é o cenário que serve de pano de fundo para “Coringa”. É nesse habitat que Arthur, um palhaço freelancer, que vive com sua mãe doente, atormentado por vários problemas mentais, se vê desassistido pelo sistema público de saúde de Gotham.

 

Mais ainda: ele tem um problema neurológico que o faz rir – de nervoso, literalmente – em momentos nada engraçados. Daí fica difícil contar com a boa vontade de quem está por perto, mesmo que ele leve consigo um cartão que explique sua condição de saúde. Pois o deboche, o desprezo e a injustiça social reinantes irão se misturar num caldeirão de proporções imprevisíveis e, neste momento, por conta de vários eventos encadeados, Arthur descobrirá que não precisa mais se curvar ao que a sociedade lhe diz como certo. Entendam: neste momento, o filme faz um interessante desvio e mergulha mais a fundo no binômio Arthur/Coringa, deixando momentaneamente de lado o caos social que está à volta, para embarcar nele mais à frente.

 

Todd Phillips deve ter pensado em uma mensagem implícita em seu longa: num tempo em que as pessoas estão igualmente massacradas pelo sistema, vivendo às pressas, vendo derreter diante dos olhos todas as salvaguardas de saúde, educação, geração de emprego e, por conta do caos reinante, figuras escabrosas surgem como salvadoras da pátria. Tudo bem que o Coringa não reclama para si este papel, pelo contrário, mas ele surfa esta onda com a conveniência de quem vê algo cair no seu próprio colo.

 

Não é preciso dizer que Joaquin Phoenix é o próprio filme. Sua atuação é marcante e enervante, deixando qualquer ator que tenha vivido o Coringa para trás. Mesmo Heath Ledger, que era o detentor do posto até aqui. Um último detalhe sobre o longa: é um produto direto – em termos de influência recebida e informação – do cinema americano setentista, especialmente de gente como Martin Scorses, cujo “Taxi Driver”, certamente foi visto e revisto com carinho por Phillips. Não por acaso, Robert De Niro tem um papel muito apropriado neste filme terrivelmente belo.

The Joker (USA). De Todd Phillips. Com Joaquin Phoenix e Robert de Niro.
Duração: 121 minutos.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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