Os trinta anos do “Blue Album”
Ok, o “Blue Album” do Weezer. O que dizer dele? Lembro de ler um texto primoroso do meu amigo e colega Marco Antonio Bart, um dos maiores fãs do grupo americano, no qual ele dissecava e rankeava todas as 217 canções da banda até então (2019). No texto introdutório e nos comentários subsequentes, Bart não conseguia evitar – ainda que parecesse conformado – a desilusão com o Weezer ao longo do tempo. A certa altura, ele mata a charada dizendo algo como “oras, a banda jamais prometeu que seria um espelho nosso ou uma reserva moral dos nossos sonhos e sentimentos quando jovens”. Tal frase tem a ver com a mudança estilística que o grupo sofreu ao longo do tempo, especialmente nos anos 2000, quando a tal inocência/sinceridade dos primeiros tempos parecia jogada fora em favor de truques baratos em nome da fama ou se “estar in” em relação à uma modernidade pop-rock que só se provou vazia. Era quase uma decepção consigo mesmo, com as próprias escolhas, os caminhos que optamos por seguir, os resultados que vieram a partir disso. Coisa de fã, mas, não tanto assim. De alguma forma, as dez primeiras canções do Weezer (e as outras dez do segundo álbum, “Pikerton”, de 1996) serviram como esse tal espelho mencionado acima. De algum jeito elas significaram QUASE TUDO.
Digo isso na condição de fã do Weezer. Não tanto quando Bart, mas um fã, digamos, esclarecido o bastante para reconhecer a mesma estratégia adotada pela banda nos anos 2000. Eu sempre ouvi os álbuns lançados com boa vontade, com otimismo, sempre procurando achar algo que lembrasse aquele primeiro disco azul. Algumas poucas-pouquíssimas vezes o esforço foi recompensado, mas, exceto por “Pinkerton” e umas cinco outras faixas gravadas pelo Weezer desde então, a sintonia nunca se repetiu. Até me enganei – talvez fosse entusiasmo – com “Van Weezer”, um disco lançado em 2021, com o apelo de “revisitar as origens” da banda, mas as canções não sobreviveram ao teste do tempo. De pouco tempo. Não como as do primeiro álbum, de 1994, sobrevivem e ainda estão aqui. Era, claro, outro tempo. Início de faculdade, para mim a sensação de finalmente ter achado o que queria fazer. De encontrar novos amigos reais, com os quais poderia fazer planos. E que se identificavam com o grupo o suficiente para que se sentissem representados pelas mesmas músicas. É coisa de ainda lembrar da primeira vez que viu o clipe de “Buddy Holly” na MTV e comentar: “cara, você viu aquela banda nova, o Weezer?” no dia seguinte. Era outro mundo.
E, bem, o primeiro disco do quarteto formado então por Rivers Cuomo, Matt Sharp, Brian Bell e Patrick Wilson, lançado em 10 de maio de 1994, era o grande artefato sonoro daquele ano, junto com “Parklife”, o terceiro trabalho dos ingleses do Blur – que ainda receberá um texto de aniversário aqui. A já mencionada “Buddy Holly” era o motivo de encantamento com o grupo, algo que logo mudou quando ouvi o álbum. Eram, pelo menos, cinco canções sensacionais ali. Logo após “Buddy”, “Undone – The Sweater Song” mostrava o caminho para um outro Weezer: menos engraçadinho, menos feliz, terrivelmente parecido com as pessoas que eu conhecia, querendo ser notado. Apenas isso. E tinha “Say It Ain’t So”, outra lindeza, cuja letra falava de uma suspeita de alcoolismo em relação ao pai de Rivers Cuomo, que se provou injustificada. Tinha a perfeita “In The Garage”, na qual o vocalista descreve um espaço no qual “se sente seguro” e “para o qual volta” no fim do dia. Ali estão seus discos, seus posters na parede, suas coisas, trecos e troços, que o definem. É como se ele regressasse de uma cirurgia plástica diária e lá estivesse seu retrato original, para lembrá-lo de quem é. E, bem, ao fim do álbum, o grande momento do Weezer em sua história: “Only In Dreams”, a definitiva canção de amor impossível, só realizável quando estamos inconscientes, logo, num outro plano, condenado a só existir lá. Como invólucro, oito minutos de rock distorcido, melódico, hipnótico, condensados na linha de baixo de Sharp e o crescendo que vai se construindo até a explosão final. Épico é isso.
Ao lado de Rivers, que era o guitarrista principal e compositor das letras, Matt Sharp, o baixista e vocalista de apoio, provou ser o pequeno gênio pop por trás da crueza existencial reinante. Seu senso de humor deu um tom de auto-ironia às canções do Weezer, dando-lhe uma aura cool que, pense bem, até poderia ser irreal, visto que Rivers não estava brincando quando usava penteados de cogumelo, óculos de tartaruga e acreditava ser uma mudança profunda em sua personalidade passar a dar ouvidos ao que cantavam Black Francis e Kurt Cobain em vez que prestar atenção aos solos de guitarra de bandas como Def Leppard, Quiet Riot e Aerosmith. Brian Bell, conhecido da banda, entrou para o Weezer após a defenestração do primeiro guitarrista, Jason Cropper. E Pat Wilson, amigo de Rivers desde que este viera para Los Angeles, o conheceu quando este trabalhava numa Tower Records próxima. Neste ambiente classe média baixa de Los Angeles, os sujeitos passaram por perrengues, empregos estranhos, mas acreditaram que aquela lenga-lenga existencial fazia algum sentido. E apostaram nela em diferentes níveis e intensidades. Deu no que deu.
Após assinar com a DGC Records, o Weezer entrou em estúdio com a missão de encontrar um produtor, algo impossível, já que Rivers sempre cuidara dessa função informalmente. O registro que tinham, “The Kitchen Tape”, com dez canções, gravadas na “Mansão Weezer” em 1992, serviu como base para a escolha do repertório, cedendo cinco faixas, ficando as outras cinco a cargo do entrosamento da banda com o tal produtor novo, que viria a ser Ric Ocasek, dos Cars, que se apaixonou pelas canções já gravadas. No segundo semestre de 1993, o álbum foi gravado, nos primeiros meses do ano seguinte, trabalhado e lançado. O primeiro show foi num lugar chamado “The Lodge”, como banda de encerramento de uma banda chamada … Dogstar, na qual Keanu Reeves era o guitarrista. Rivers conta que o cachê que sobrou para o Weezer, que se apresentou após o Dogstar, foi de cerca de trinta dólares. Em pouco tempo a situação se reverteria, especialmente com a entrada em ação de Spike Jonze, que viria a dirigir os dois primeiros – e sensacionais – clipes do grupo: “Undone – The Sweater Song” e “Buddy Holly”. Nas graças da MTV gringa e, a partir dela, das repetidoras ao redor do mundo, o grupo foi subindo nas paradas, emplacando canções e transmitindo aquela sensação que mencionei acima – de que éramos nós, vinte e poucos anos, igualmente ferrados, feios, com o coração dilacerado, mas ainda com algo a dizer – que estávamos naquela capa de disco, naqueles clipes, éramos nós. De alguma forma.
Depois disso, o grupo iniciaria uma carreira de álbuns que me remete novamente ao que meu amigo Marco Bart descreveu em seu texto. Uma banda que foi escolhendo caminhos contraditórios, que a levou às fronteiras da auto-paródia, da descaracterização completa, da total cessão ante ao poder da indústria da música e da própria vida segundo os parâmetros vigentes de sucesso, riqueza e prosperidade, obtidos a custos altíssimos. Ou não, vá saber. Os trinta anos desse disco são os trinta anos de uma versão inexistente de nós, que nos identificamos tanto com ele. É um sentimento estranho olhar para essas canções dessa forma, com uma “energia” renovada. É como se elas estivessem sempre estado aqui.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.