O Colosso “Screamadelica”

 

 

Outro dia estávamos falando por aqui sobre os grandes discos que completaram 30 anos em 2021. “Bandwagonesque”, do Teenage Fanclub; “Blood Sugar Sex Magik”, do Red Hot Chili Peppers; o álbum negro do Metallica; “Out Of Time”, do REM e, claro, o triunvirato do grunge, “Nevermind”, do Nirvana; “Badmotorfinger”, do Soundgarden e “Ten”, do Pearl Jam. Ainda faltam muitos álbuns por comentar, claro, como, por exemplo, a guinada eletrocomportamental do U2 em “Achtung Baby”, que terá texto especial por aqui, inclusive. Ele é o meu preferido daquele ano em termos de mudança de parâmetros e influência na música popular, ao lado da obra definitiva do Primal Scream, “Screamadelica”. Que ano foi este tal de 1991, né? A maioria destes trabalhos recebeu versões estendidas, muitas vezes caixas inteiras dedicadas a eles, como, por exemplo, o disco do Metallica, que até um tributo ganhou. Mas, a meu ver, o futuro estava nesta apropriação da eletrônica como um elemento a mais para dar fluência ao rock e foram U2 e Primal Scream que fizeram isso.

 

Como ainda falaremos no álbum dos irlandeses em um futuro próximo, vamos ficar, por enquanto, por conta do triunfal “Screamadelica”, dos escoceses. Ele foi o trabalho que mais soube traduzir o espírito das raves e do chamado acid rock britânico do fim dos anos 1980 em uma forma de música muito bem informada e com diálogo franco com guitarras, psicodelia e beats dançantes. Fez o que parecia impossível, ou seja, estabelecer um idioma comum para todos os participantes dessa verdadeira Torre de Babel musical. Enquanto o U2 fazia algo semelhante com seu “Achtung Baby”, investindo uma leitura eletrônica mais setentista, de espectro Bowie/Eno, o Primal era pura contemporaneidade com cara de anos 1960. Era uma polaroide em movimento do chamado Segundo Verão do Amor, de 1988 para 1989, quando parentes próximos como Stone Roses e Happy Mondays eram as maiores apostas deste futuro. Mas, enquanto os grupos de Ian Brown e Shaun Ryder não conseguiram confirmar as apostas, foi Bobby Gillespie, ex-baterista do Jesus And Mary Chain, até então orbitando a cena com seu Primal Scream, que conseguiu furar a fila e chegar em primeiro lugar, atravessando a barreira da virada daquela década.

 

Gillespie já formara o Primal enquanto ainda tocava com o Jesus. “Screamadelica” foi o seu terceiro álbum, o primeiro pelo selo Creation, de Alan McGee. Conta a lenda que McGee foi quem levou Bobby para as experiências com ácido, algo que havia voltado com força naquele tempo e que chegara a dar nome para a música que vinha sendo feita na Velha Ilha: Acid Rock. E a gente sabe, era uma fusão de rock de têmpera indie/alternativa com batidas que vinham materializadas pelo uso da eletrônica e dos pianos, ambos oriundos do espectro da House Music. Era, como dissemos, psicodélico e dançante em níveis iguais. Se o Primal Scream a princípio fazia um som alternativo mas nada afeito às pistas de dança ou às raves, foi a partir desse contato entre Bobby e Alan que a sonoridade do grupo foi totalmente transfigurada. Enquanto a parcela rock voltou-se especialmente para o que bandas como Rolling Stones e Byrds haviam feito no fim dos anos 1960, as tais batidas dançantes eram sintonizadas com essa ascendência house que mencionamos, devidamente temperada e adaptada para favorecer o groove, a hipnose, a capacidade da canção viver o paradoxo de ser pop e viajante ao mesmo tempo.

 

Pode parecer ambicioso e era. O que o Primal Scream fez com “Screamadelica” influenciou vários troncos de artistas noventistas: as bandas do chamado “britpop”, que pegaram emprestada esta visão modernista, chegando, por vezes, a usar elementos eletrônicos em suas gravações – incluindo aí Blur e Oasis. Também foram decisivos para uma incontável procissão de artistas pop/rock, que enxergaram o uso da eletrônica como algo necessário. Nesse time aí a gente encontra gente que varia de Jesus Jones, EMF e Stereo MC’s, passando por Finlay Quaye, Tricky e o pessoal de Bristol, como Massive Attack, por exemplo. Além disso, o álbum trazia uma coleção inestimável de canções, compostas, arranjadas e produzidas com a intenção de colocar o ouvinte num mar de samples e de batidas, tudo temperado por guitarras e pianos, aerodinâmicos, irresistíveis e incontroláveis.

 

Um single como “Come Togheter”, por exemplo, não surge todo ano. É uma usina dançante e mântrica, que antecipou muito do que fariam, por exemplo, os Chemical Brothers quatro anos mais tarde. “Higher Than The Sun”, ainda que não tenha a mesma fluência da anterior, é pura psicodelia reprocessada para o início dos anos 1990, amplificada, globalizada e capaz de evocar pontos coloridos que se moviam em velocidades diferentes. E o que dizer de “Loaded”, praticamente uma ode aos vocais gospel, aos metais sampleados e à levada dançante em câmera lenta, com batida que chegava a lembrar discretamente a versão de “La Vie En Rose”, que Grace Jones gravara em 1981. E a síntese de tudo, que já surgia logo na abertura do álbum: “Movin’ On Up”, atualizando o ouvinte: pianos, vocais, refrão, percussão, clima hippie revisitado. Tudo funciona.

 

Como presente de 30 anos, “Screamadelica” recebeu uma companhia luxuosa e indispensável: os chamados “Screamadelica 12″ Singles”, lançados em formato de vinil, trazendo dez LPs com várias versões das canções do álbum e um LP inédito, com mixes novos para “Shine Like Stars”, feitos pelo produtor do álbum, Andy Weatherall, falecido ano passado.

 

Se você ainda não ouviu “Screamadelica” ou parou pouco tempo para prestar atenção em suas músicas, faça o quanto antes. É uma dessas obras visionárias, à frente de seu tempo e que, por isso, soam atemporais. Se muitos discos lançados em 1991 já soam meio velhuscos e funcionam mais por nostalgia do que por qualquer outro motivo, saibam que ainda é possível ouvir esta lindeza e constatar que ela não envelheceu nada. Um triunfo.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

2 thoughts on “O Colosso “Screamadelica”

  • 7 de outubro de 2021 em 15:21
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    Amanhã dia 08/10, aniversario do disco de estreia dos The Charlatans, o que você acha da banda.

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    • 8 de outubro de 2021 em 09:27
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      Rapaz, eu gosto, mas confesso que nunca ouvi com a atenção devida. Quem sabe agora? Obrigado pela lembrança!

      Resposta

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