O Coldplay não é mais uma banda
O show do Coldplay no Rock In Rio ainda está rolando e eu já estou fazendo a resenha dele. Sim, é isso mesmo e posso dizer que já sei exatamente como ele vai terminar. Vai ter comoção, vai ter efeito especial, vai ter inovação tecnológica, vai ter arrebatamento, vai ter vivência, experiência, eles vão “entregar tudo”, enfim, vai ser gigante. Já está sendo, aliás. E, ao fim e ao cabo, não vai empolgar do mesmo jeito que a apresentação do Green Day. Ou da Maria Rita, ou, quem sabe, do Djavan. Digo isso sem qualquer gosto pessoal envolvido. É porque o Coldplay não dá mais show, dá espetáculo. Não que isso seja bom, pelo contrário. O Coldplay não é mais uma banda. É outra coisa.
Chris Martin está discursando, ensopado, falando alguma coisa sobre superação, sobre acreditar em si mesmo, coisas assim. São pequenos workshops entre as canções. Até o terceiro disco, o Coldplay foi uma banda – e das boas, ainda que eu prefira os dois primeiros álbuns. Do quarto trabalho em diante – “Viva La Vida”, de 2008 – a banda foi se tornando uma corporação especializada em grandes espetáculos globais. Mas grandes mesmo, tipo abertura de Copa do Mundo ou de Olimpíada. A música ainda está lá, mas a banda trabalha de uma forma que o público encara suas canções como hinos motivacionais impressionantes, de um jeito que nós, que não achamos isso tudo em gravações pós-2008 do grupo, pensamos que estamos muito, muito errados. Certo que os fãs do Coldplay ainda amam “Yellow”, “The Scientist”, ambas inseridas no setlist do show do RIR, mas o frenesi com que recebem, por exemplo, as fracas gravações do último álbum, “Music Of The Spheres”, beira o êxtase absoluto e incontestável. “Biutyful”, por exemplo, que é cantada com um efeito vocal que dá a impressão que Martin transformou-se num golfinho espacial, é constrangedora. E, no palco, ela foi cantada por ele e por um…fantoche. Mas esta situação proporciona aos fãs uma felicidade inquestionável por fazer parte de “algo maior”, que é admirar o quarteto inglês, podendo compartilhar com eles da “vivência”, da “experiência”. O público do Coldplay espera muito mais que música. São como fiéis à beira da conversão, da bênção, de algo transcendental.
A banda, por vontade própria, escolheu proporcionar isso. Fico pensando num hipotético admirador do quarteto que vá ao show interessado apenas nas canções e em suas nuances, timbres, arranjos…Deve ser impossível se concentrar só nelas diante da parafernália que está em ação. E Martin, que é ótimo frontman, esperto, simpático e disposto, oferece humildade sorridente para que todo mundo se sinta contemplado por sua magnânima presença. E ele faz isso de forma instintiva, não há qualquer culto à personalidade ou egolatria, é um cara de banda, que trabalha em conjunto. Isso também contribui: o Coldplay é formado por caras legais, bons filhos, bons maridos, bons irmãos. Como ir contra isso?
Portanto, gente, não se trata mais de analisar se o grupo era melhor até 2005 ou não. Coldplay já gravou com Rihanna e Beyonce, além dos coreanos do BTS. Soube pegar todo o messianismo do U2 e depurá-lo de qualquer subversividade, deixando apenas a pregação midiática acima do bem e do mal. Musicalmente os caras incorporaram beats e programações eletrônicas e deram origem a um pop de estádio moderníssimo e mamútico, gerando clones mais e menos inflados, tipo Imagine Dragons ou Bastille. E agora, com o disco mais recente, brincam de viajar pelo espaço, emulando uma jornada estelar-musical ou algo no gênero. Não é mais música, é outra coisa. As coberturas chapa branca ao redor do mundo deliram.
Você não verá uma resenha negativa sobre o show do RIR. Todos os veículos, grandes e pequenos destacarão a eficiência do espetáculo. Afinal de contas, todo mundo cantou, pulou, exibiu pulseiras coloridas, aplaudiu o grupo usando capacetes coloridos e tocando teclados enquanto Chris Martin corria sobre um painel coloridíssimo no chão do palco, como se estivesse numa versão espacial da apresentação de Dia da Criança do Plaza Shopping, aqui em Niterói. E o setlist, ora bolas, atendeu plenamente ao esperado. Não há possibilidade de algo sair errado num show do Coldplay, todas as chances de surgir algo imponderável foram limadas e expurgadas. Foi “épico”, foi “histórico”, dirão os chapa branca da mídia. Para muitos, isso é a perfeição.
Eu prefiro as falhas e as humanidades imprevisíveis.
Foto: Stephanie Rodrigues/G1
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Ahh que texto perfeitoo!! Eu AMAVA Coldplay e fiquei extremamente decepcionada com este show… triste.. lá se vai uma banda que um dia ja foi mto boa…. infelizmente as pessoas ainda não estão preparadas para esta conversa!!!
Te entendo, Victor. Obrigado pelo comentário sensato.
Eu sou o admirador hipotético do texto,um órfão de um coldplay que não existe mais, aquela banda , o público, o espetáculo colorido, não parece a mesma dos 3 álbuns que eu gosto tanto…até yellow , the scentist , fix you, clocks, soam diferentes das que eu ouço no meu fone de ouvido…enfim, pelo menos posso sempre voltar para meu pequeno universo introspectivo de parachutes lá no início dos anos 2000