New Order e a modernização do futebol inglês

 

 

Quem estava vivo em 1990 lembra bem de “World In Motion”, do New Order. Era a canção oficial da seleção inglesa – o pomposo English Team – para a Copa do Mundo daquele ano, realizada na Itália, na qual a equipe chegou em quarto lugar, perdendo para a seleção anfitriã na disputa pelo terceiro lugar. Mas não é do desempenho futebolístico do time que este texto pretende falar. Ao ouvir a edição 419 do sensacional roNca roNca, programa webradiofônico apresentado por Maurício Valadares e Nandão, me deparei com a participação do ótimo jornalista inglês Tim Vickery. Ele é correspondente de vários veículos internacionais no país, especializado em futebol brasileiro. Na pauta de sua conversa com os apresentadores do roNca, a questão: “por que as grandes bandas inglesas de rock dos anos 1960/70/80 não pareciam ter interesse pelo futebol?”.

 

De fato, uma olhada na produção musical dos grupos ingleses dessas décadas aponta uma lacuna imensa em relação ao futebol. E Vickery deu um testemunho importantíssimo para explicar a situação. Segundo ele, o esporte era atrelado diretamente ao homem inglês de meia idade, decadente, simplório, vinculado ao passado. Era tudo o que os jovens integrantes de Beatles, Rolling Stones, The Who e similares não queriam ser, iguais aos pais, avôs e vizinhos. Gostar de futebol significava ir na direção oposta a todos os signos de modernidade com os quais essa turma estava comprometida. Meditação, drogas, roupas, livros, filmes. Era uma nova Inglaterra que havia nascido do pós-guerra, com a primeira geração de integrantes da classe trabalhadora com acesso a educação de qualidade, moradia popular, serviço médico unificado e acessível, ou seja, gente como John Lennon e Paul McCartney era integrante desse contingente de jovens que cresceriam sob o signo dessa modernização social e, consequentemente, cultural.

 

Sendo assim, ao longo de trinta anos, a seleção inglesa e os clubes de futebol tiveram canções voltadas para o público que ia aos estádios, os tais quarentões simplórios e decadentes. Até que surgiu “World In Motion” em 1990, até hoje, o único primeiro lugar do New Order nas paradas de sucesso. A canção chega sob a influência de uma visão moderna, que antecipava e captava os ecos do neoliberalismo, que teria efeitos definitivos na própria criação da Premier League em 1992. Com a imagem atrelada às raves e à cena alternativa/eletrônica, o New Order, oriundo de Manchester, era a novíssima cara desejada nos estádios. Eram tempos de vários incidentes com hooligans em estádios da Europa e da própria Inglaterra. No dia 29 de maio de 1985, o confronto entre torcedores do Liverpool e da Juventus, na final da Liga dos Campeões da Europa, no estádio de Heysel, na Bélgica, terminou com 39 mortos. A “Tragédia de Hillsborough” foi outro incidente que ocorreu em 15 de abril de 1989 no Estádio Hillsborough, em Sheffield durante o jogo entre Liverpool FC e Nottingham Forest, pelas semifinais da Taça da Inglaterra. Resultado: 96 mortos e mais de 700 feridos.

 

A quem interessava ver os estádios europeus fechados para os times ingleses? E o campeonato nacional marcado pela violência das torcidas? Ninguém, especialmente nos tempos que estavam chegando, balizados pelo aumento significativo das receitas de clubes e federações. “World In Motion” acabou cumprindo o papel de fazer essa novíssima ligação, modernizando o amor pelo futebol, modernizando jogadores – que apareciam cantando no clipe da canção – e tornando o esporte alvo de um renovado interesse, muito voltado para uma noção de valorização do que era “essencialmente inglês”, que também serviu como combustível para alimentar o britpop nascente. Não por acaso, os irmãos Gallagher, também de Manchester, líderes do Oasis, atrelaram sua imagem ao Manchester City, clube “patinho feio” da cidade, para o qual torciam. Tal movimento fez com que até pessoas aqui no Brasil adotassem o City como “seu clube” no exterior, um traço marcante do futebol sob o signo do neoliberalismo, desvinculado de suas origens regionais e sociais.

 

Claro, o New Order não tem nada a ver com isso. Emprestou sua imagem e a ideia funcionou muito bem.

 

Mas tal mudança gerou uma nova dimensão de futebol, que tem como efeitos colatarais, por exemplo, os salários estratosféricos, a demolição/modernização de estádios, amputando suas seções populares, a internacionalização de times e mesmo de seleções e a asfixia financeira dos clubes que não tiverem noções empresariais. Por essas e outras, surgiu na própria Inglaterra o movimento Against Modern Football, ou seja, “Conta o Futebol Moderno”. Deste nós fazemos parte também e, como cariocas, sentimos falta dos grandes confrontos entre equipes como Campo Grande, Bonsucesso, Olaria, São Cristóvão, e outros times da capital do Rio, que sumiram nos borderôs e balancetes.

 

De qualquer maneira, fica registradíssima a participação de Tim Vickery no roNca roNca e a nossa expressa recomendação para que vocês ouçam o programa. Maurício Valadares, para quem esteve em Marte nos últimos 40 anos, é um radialista responsável por todo o conteúdo moderno da Rádio Fluminense FM e por antecipar/registrar as mudanças decisivas na música pop do planeta. Lá ele apresentava o sensacional Rock Alive e, posteriormente, criou o Ronca Tripa (Rádio Fluminense), o Radiolla (Globo FM) e o roNca roNca (que já esteve na Rádio Cidade e na Oi FM e agora é postado direto no site às quintas-feiras e divulgado em várias plataformas de streaming).

 

 

Site Oficial do roNca roNca – acesse aqui

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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