Ninguém regula o América – O Capitão e os embates ideológicos dos gibis mainstream

 

A Panini Brasil lançou no final de 2018 o primeiro volume de Capitão América dentro da iniciativa Marvel Legado, bolada pela editora americana para atrair novos e – principalmente – velhos leitores através de um retorno ao que seria a essência clássica de cada personagem. O caso do velho Capitão é particularmente emblemático das razões que levaram a mais esse relançamento da linha de quadrinhos e da relação algo fraturada que hoje existe entre os fãs mais tradicionalistas e os autores contemporâneos.

 

Em Lar dos Valentes, que compila as edições norte-americanas de Captain America 695 a 700, Steve Rogers, alter ego civil do herói, embarca em uma road trip por cidades do interior dos Estados Unidos, atravessando memórias de seus anos de combate ao crime ao mesmo tempo em que busca se reencontrar com o que considera o verdadeiro espírito do seu país. Ao mesmo tempo, o Capitão tem que lidar com um grupo terrorista de extrema direita e com as consquências longínquas desse conflito. A arte de traços limpos, simples numa primeira olhada, mas ríquissima em dinâmica e expressividade, é de Chris Samnee. O roteiro ficou a cargo do veterano Mark Waid, que já havia salvado o personagem em pelo menos duas outras fases de desastres criativos e editoriais. A dupla já havia trabalhado junta, com sucesso, nos gibis do Demolidor e da Viúva Negra.

 

É um arco com grande senso de aventura, bem resolvido e altamente eficiente na apresentação de sua narrativa, características do trabalho de Waid. A arte casa perfeitamente com a proposta, deixando o roteiro respirar e imprimindo um ritmo rápido entre as cenas. Uma história que fala diretamente ao coração do fã de longa data do Capitão América e é capaz de agradar com facilidade novos admiradores em busca de bravos atos de heroísmo.

 

O “renascimento” do Capitão em histórias mais tradicionais é emblemático dos choques ideológicos que vêm ocorrendo na indústria dos gibis mais comerciais, onde reinam a Marvel e a DC. Nos anos anteriores ao retorno de Rogers, o manto do Capitão América estava sendo utilizando por Sam Wilson, o herói Falcão, um personagem negro vivendo histórias ligeiramente mais sensíveis em aspectos sociais e políticos. Em termos de representatividade, foi um gesto inteligente e ousado da Marvel colocar um negro como o herói mais identificado, dentro de seu universo ficcional, com o ideário estadunidense.  Talvez mesmo uma influência da Disney, atual proprietária da editora, que busca nos seus produtos mais recentes incluir a maior quantidade possível de personagens relacionados com diferentes culturas, experiências de vida e origens.

 

Nos quadrinhos não foi diferente. O antes poderoso Thor caiu em desgraça e seu nome e martelo foram assumidos por uma mulher. O Hulk foi substituído por um personagem jovem e de ascedência asiática, com os mesmos poderes. Wolverine morreu e seu lugar foi ocupado por sua clone, a jovem Laura Kinney, codinome X-23. E Sam Wilson tornou-se o portador do escudo estrelado.

 

Sam Wilson: Captain America durou de 2015 a 2017, escrita por Nick Spencer, com um time variado de desenhistas. E, em 2016, Spencer e a editora trouxeram de volta o original. O primeiro número de Steve Rogers: Captain America, entretanto, terminava com uma reviravolta que deixou fãs enjoados e irritados em todos os cantos, e chegou até mesmo a estrelar matérias em veículos da mídia não especializada. No final do gibi, após covardemente jogar um aliado de um veículo aéreo em movimento, o velho Capitão proferiu a fatídica frase: “Salve a Hidra!”.

 

O que parecia um lance oportunista, para causar grande impacto no relançamento do personagem, mostrou-se um arco planejado para ter longa duração – e consequências, embora essas últimas tenham sido suavizadas, como vamos ver logo. O Capitão América, o mais nobre combatente do universo Marvel, agora era um agente infiltrado, leal à organização fascista que nos quadrinhos da editora é uma versão dos nazistas da Segunda Guerra.

 

Spencer pretendia que a corrupção do personagem, provocada na história por um cubo cósmico, um artefato que altera realidades, se tornasse parte de seu cânone, ainda que eventualmente todos imaginavam que ela, cedo ou tarde, seria revertida. A reação dos leitores foi imensa, talvez maior do que prevista incialmente pela companhia, a ponto de Spencer declarar ao portal Daily Beast: “Eu sou atualmente a pessoa mais odiada na América”. O que se argumentava era que o novo alinhamento ideológico do personagem representava sobretudo uma ofensa a um de seus criadores, Jack Kirby, desenhista-roteirista, um dos monstros sagrados das Hqs. Kirby era judeu; transformar o Capitão em um terrorista fascista era, no mínimo, falta de sensibilidade com as implicações políticas e simbólicas de uma decisão inesperada como essa.

 

Talvez assustados com o tamanho da reação, Spencer e o editor-chefe da Marvel na ocasião, Axel Alonso, foram a público negar que a guinada de Steve Rogers era qualquer tipo de metáfora ou comentário político sobre os EUA na era Trump. O que foi uma pena, pois o Capitão fascista era, talvez, o personagem certo, no status ideal, para tecer essa crítica. Não havia espelho distorcido melhor no elenco da editora.

 

Mas uma edição específica, lançada como epílogo da saga Guerra Civil II, mostra que os planos originais pareciam realmente seguir na direção de tornar o Capitão um instrumento de denúncia do sequestro dos valores de um país por um contigente crescente afinado com a extrema-direita. Em Civil War II – The Oath (publicada no Brasil em Capitão América 14, de abril de 2018), também escrita por Nick Spencer, Steve Rogers chega para visitar seu antigo aliado, Tony Stark, o Homem de Ferro, atualmente em coma. Com os dois sozinhos na sala, Rogers lamenta o estado do antigo amigo e os rachas que ocorreram na comunidade super-heróica. Mais do que isso, ele revela sua agora real natureza e profere um discurso que soa muito familiar para quem vive na era Trump. Ele fala de recuperar a grandeza da nação e do mundo, e de como ambos anseiam por segurança, de como as pessoas não se sentem mais representadas por um governo fraco e negligente. “As pessoas”, diz Rogers, “as pessoas sem rostos a quem vocês juraram defender, decidiram que já tiveram o bastante. Elas queriam se sentir seguras e protegidas, e elas finalmente perceberam que vocês não tinham a força para isso. Elas começaram a pedir por algo melhor”.

 

E a partir desse ponto, o Capitão América é designado diretor da SHIELD, a organização de segurança dos quadrinhos Marvel, até se revelar um traidor, aliado e comandante da Hidra, e tomar as rédeas do país, instalando um governo autoritário, durante a saga Império Secreto.

 

Império Secreto, recém-publicada no Brasil em formato de mini-série, desenvolveu-se de forma um tanto confusa e terminou deixando a impressão de que não realizou tudo que prometia ou pretendia. Impossível saber até que ponto as reações iradas dos fãs influenciaram na suavização do teor político da história e dos óbvios paralelos que ela poderia tecer entre o mundo ficcional da Marvel e o cenário político estadunidense e, inegavelmente, mundial. No final da saga, as revistas dos dois Capitães Américas em atuação, Sam Wilson e Rogers, que eram lançadas em paralelo, foram encerradas. Wilson voltou a assumir a identidade de Falcão e Steve Rogers era de novo o Capitão, puro e heróico. É essa fase que a edição da Panini apresenta. Se você é fã do personagem clássico ou se tornou um admirador do Capitão através dos filmes mais recentes, Lar dos Valentes é a história que procura.

 

Confesso que o garoto que fui, que tomou emprestado do Capitão alguns dos valores defendidos por toda uma vida, teria vibrado com esse retorno. Como vibrei em parte, confesso. O apelo do Capitão aventureiro, meio James Bond, meio Indiana Jones de colant, é inegável. Mas o adulto que vejo todo dia no espelho se pega pensando o tanto de história boa e provocadora que teria saído desse arco caso a Marvel tivesse permitido a Spencer desenvolver todo o potencial político e metafórico, inato, da premissa.

 

Depois da passagem de Waid e Samnee, o Capitão ganhou um novo número um – nos quadrinhos, edições inaugurais são infindáveis. Se na fase de Waid as consequências do Capitão fascista são referenciadas de forma absolutamente distante, na publicação atual o dedo é colocado na ferida com mais vontade. As edições iniciais tratam abertamente dos estragos causados pelo Capitão na sua passagem pela Hidra, inclusive com a perda da confiança do povo e do governo pelo herói. Essa nova iteração do personagem é escrita por Ta-Nehisi Coates, escritor e jornalista estadunidense, autor do livro Entre O Mundo E Eu e responsável pela revista do Pantera Negra durante o estouro do personagem na esteira do filme de 2018. O primeiro autor negro, na história, a escrever as aventuras do Capitão. A abordagem de Coates é bem-vinda e necessária para um personagem como o  Capitão América no século XXI. Histórias que chegam em breve ao Brasil e, desnecessário acrescentar, são altamente recomendáveis.

Fabio Luiz Oliveira

Fabio Luiz Oliveira é historiador e crítico da Arte não praticante. Professor da rede pública do Rio de Janeiro. Escritor sem sucesso, espanta o mofo de seus textos em secandoafonte.wordpress.com

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