“Não verás país nenhum” – o Brasil que já chegou

 

 

No começo da pandemia o escritor Ignacio de Loyola Brandão deu uma entrevista para o UOL sobre a possível profecia feita por ele em seu livro “Não verás país nenhum”, de 1981.

 

Ao renegar o rótulo de visionário de um futuro longe de qualquer traço de otimismo, Ignácio disse que sua intenção ao escrever a história foi de fazê-la como uma ficção político burocrática e que se as coisas se mostraram tão parecidas com a sua criação foi porque a realidade o copiou. O que talvez tenha feito a diferença, acrescentou ele, é que um escritor tem o olhar mais atencioso para as coisas que o rodeiam.

 

Cresci ouvindo minha mãe citar “Não verás país nenhum” toda vez em que a gente conversava sobre obras de arte que previram o futuro. Muito antes do COVID-19, do desgoverno, do gás a preços ofensivos e da carne virar artigo de luxo ela sempre dizia que na mente de um dos maiores escritores brasileiros as coisas já haviam se mostrado bem complicadas.

 

O futuro no livro do Ignácio é quente, isolado, desesperador. O que restou da Amazônia virou um deserto, o Parque do Ibirapuera é um grande estacionamento e o país passou a ser governado pelo Esquema, um regime ditatorial que nega a ciência, maquia dados e tem como o braço armado da lei uma espécie de milícia:

“Uma das mulheres saiu para telefonar, o vigia me mandou andar. E agora? Quando passamos pela lâmpada, dei um chute no pedestal. Ele partiu-se ao chão. O homem atirou. As mulheres gritaram. Corri, subindo o corredor. Tinha divisado uma porta aberta. Outro tiro. Um impacto seco perto de mim”

 

O direito de ir e vir foi totalmente destruído pelo Esquema, que só fornece para as pessoas um mesmo ônibus que elas podem usar.  A escassez de comida é geral, e só se tem acesso a ela por fichas, distribuídas desigualmente pelas diferentes classes, causando violência e desespero:

Atravessaram correndo a sala de visitas e deram de cara com os inquilinos forçados. Os três estavam de pé, como que à espera. Parece que tinham sido preparados para reagir eletronicamente ao menor sinal de perigo. Rostos tensos. O homem que sempre comia doces apontava o revólver.

– Onde é que vão?

– Comida, queremos comer.

– Não temos comida.

– Comida, água, comer, comer “

 

Por falar em água, em um país transformado pela destruição ambiental ela virou item de exposição no que é chamado de Museu das águas dos rios, e só chega às bocas de quem tem mais chances de pagar por ela com as famigeradas fichas, direito negado à parte da população vítima das consequências de vários experimentos científicos que a deixaram constituída por pessoas deformadas e miseráveis, os habitantes dos Acampamentos Paupérrimos:

“Os laboratórios do Esquema fizeram experiências em determinadas regiões para conhecer as reações do organismo humano. As comidas destruíram os metabolismos, as pessoas vivem com o gás solto. Andam envolvidas numa camada de gás malcheiroso, nem eles conseguem suportar”

 

Existem tantos aspectos assustadores em Não verás país nenhum e todos eles ligam-se ao fato dele ser um livro que jamais perdeu a sua atualidade.

 

Falamos tanto de “Admirável Mundo Novo” e “1984” e esquecemos do que Ignacio de Loyola, sem intenção ou não, deixou pulsar pela sua escrita: a importância de olharmos para o futuro que queremos, não importa por quais mãos ele irá passar ou o quão desesperador ele pode ser.

 

Uma grande parte dele já chegou.  Será mais uma tragédia que iremos normalizar?

Debora Consíglio

Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.

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