1452 óbitos num dia

 

 

Ontem precisei ir ao Centro do Rio de Janeiro. Eu moro em Niterói, cidade que fica no chamado Grande Rio, a região metropolitana da capital. Quem conhece a relação entre as duas cidades, sabe que o acesso só ocorre de duas formas: pela Ponte Rio-Niterói ou por barca e o segundo meio, por questões econômicas e de acesso, era o mais indicado. Saí de casa com hora e meia de antecedência, peguei um táxi até a Estação das Barcas e cheguei em cerca de 15 minutos, até ali, tudo normal. A partir desta parte, o texto fica, digamos, parecido com um episódio de Walking Dead, aquela série que parece ser sobre zumbis, mas é sobre o espírito humano e suas contradições.

 

Na barca, apesar de ser um modelo novo e maior, me deparei com uma quantidade enorme de pessoas, a maioria com máscaras no queixo, algumas sem máscara, todas andando na mesma direção, alheias a tudo. Como zumbis. E, ao adentrar na embarcação, eu procurei ficar num lugar relativamente isolado, algo que foi impossível. As pessoas não tinham muita preocupação em ficar perto de mim, perto umas das outras, ainda que fosse possível buscar por um espaço mais afastado. E eu, com um pequeno borrifador de álcool, uma máscara facial da 3M, e com muito medo, parecia um alienígena em meio a uma raça de seres estranhamente familiarizados com a morte.

 

Uma vez nas ruas do Rio, novamente me deparo com gente sem máscara. E sem qualquer culpa também. Pobres, ricos, gente de terno, gente de bicicleta, gente indo e vindo numa boa. Como zumbis. Na volta, o mesmo quadro, mas eu já não estava preocupado com as pessoas, só estava querendo chegar em casa. Máscaras no queixo, sem máscaras, sem culpa.

 

Ontem foi um dia especialmente triste para mim, por motivos pessoais. Além dessa tristeza implícita e intrínseca, eu me senti exposto à própria sorte, meio que lutando pela vida.

 

Sei bem que essa realidade de classe média não corresponde à do cidadão/cidadã brasileiro/a que não tem a sorte de poder ficar em casa. Mas, sendo bem sincero, fico me perguntando quantas pessoas das que vi na rua realmente ficariam isoladas em suas residências, caso pudessem.

 

A impressão que tive foi de que as pessoas decidiram, por falta absoluta de orientação apropriada, seja da mídia, seja das autoridades, que a pandemia da covid-19 “é isso aí”, “é frescura”, “é comunista”, “é de esquerda” e demais absurdos. Que ela não mata e que, se mata, ora, como disse o ocupante da presidência, ontem mesmo, quando se registrou o maior número de mortos num dia pela pandemia desde seu início, 1452:

 

“A vida continua, temos que enfrentar as adversidades. Não adianta ficar em casa chorando, não vai chegar a lugar nenhum. Vamos respeitar o vírus, voltar a trabalhar, porque sem a economia não tem Brasil”.

 

Talvez ele devesse saber que sem as pessoas não tem economia, mas exigir este tipo de associação talvez seja chover no molhado.

Somos sobreviventes no Brasil. Em cerca de um ano de pandemia, já perdemos mais de 236 mil pessoas, números de uma guerra civil.

 

Não temos política unificada de vacinação. Não temos um anúncio na TV chamando pra vacinação. O governo não faz a menor questão disso, que nos imunizemos. Para eles, quanto menos gente existir no país, melhor para a economia.

 

E seguimos. Como zumbis.

 

Em tempo: apesar dos cuidados que tomei, pelos próximos 14 dias ficarei nervoso, pensando se cada pigarro não é um sinal da doença.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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