Melô da história ou história das Melôs

 

 

Nada melhor, penso eu, que começar e terminar um texto com bom humor. Tem aquela piadinha mais ou menos assim:

Um cara entra no açougue e pede:

– Bom dia! Vocês têm “salsí”?

– Temos.

– E “lingüí”?

– Também temos. Mas… Me diz uma coisa. Por que você fala desse jeito?

– Ah, é que eu tenho uma “preguí”…

Conheci essa piada (que ainda acho engraçadinha mesmo após ter me tornado vegetariano nos anos 1990) por volta de 1972 e não sei se ela é anterior à gravação de “País Tropical” de Jorge Ben Jor por Wilson Simonal, que teve a ideia de repetir no final a primeira estrofe sem as últimas silabas das palavras: “’mó’ num ‘pá’ ‘tropi’ ‘abençoá’ por ‘Dê’ e ‘boní’ por ‘naturê’…” Talvez seja mesmo anterior, pois apócopes, assim como síncopes e outros tais diminutivos, sempre foram parte da cultura e índole brasileiras – “vou passear de moto” (tanto “motoneta” quanto “motocicleta”), “minha filha passou na facu”, “menino do Pelô”, “pode parar no farol, por favor, motô?”, sem falar em disfarces para escapar da censura como “pô”, “paca” e “duca”. E concordo em que dizer “épi” é mais rápido e prático que “aplicativo”. Na música popular, cada vez menos gente toca violão, guitarra, contrabaixo e bateria ou usa amplificador, preferindo “viola”, “guita”, “baixo”, “batera” (até “bateca” cheguei a ouvir) e “ampli”.

 

O fato é que a interpretação de Simonal para “País Tropical”, lançada em 1969, fez tanto sucesso – talvez seja até o maior hit de uma carreira cheia deles – que a palavra “Patropi” tornou-se sinônimo de Brasil tanto quanto “Albion” simboliza a Inglaterra e não faltaram matérias sobre as festas de Momo intituladas “Em feverê tem carná”. E quem reclamava dos barquinhos, beijinhos, continhas e outros diminutivozinhos popularizados pela bossa nova e da gramática toda particular do iê-iê-iê ganhou novo motivo para reclamar, mas quem reclamou o fez à toa, pois a música brasileira comercial estava entrando na Era da Apócope. Nessa mesma época, mais exatamente em 1970, saiu um disco que incluía uma palavra importante para nós no momento – “Vai”, samba carnavalesco do saudoso Osvaldo Nunes:

 

Vai
Pode ir
Se pensa que eu vou chorar
Eu vou é sorrir
Tua partida
Só me deu satisfação
Me deu sossego
Libertou meu coração
De alegria
Eu vou cantar
Esta “melô”:
Lá, laiá, laiá…

 

Sim, esta é a primeira gravação de que tenho notícia a incluir esta apócope da palavra “melodia”. E em poucos anos ela se tornaria onipresente nas rádios, lojas de discos e discotecas. Com um bom motivo, para além da “preguí”: a assimilação de elementos culturais estrangeiros. Esta sempre começa por sua nacionalização. Por exemplo, no Brasil é preciso ser pessoa muito esnobe para dizer que gosta de “Superman”, “Star Trek” e “Ugly Betty” e não de “Super-Homem”, “Jornada Nas Estrelas” ou “Betty, A Feia”. Na música, não se ouvia “Bill Rêilei énd Ris Cômets” e sim “Bill Rálei e seus Cometas”, e a banda de Mick Jagger não era os “Stâns” e sim os “Istônes” (do mesmo modo que a Espanha adora a banda inglesa “los Bítles” e a França gosta do cantor estadunidense “Bobí Darrãn”). E muitas vezes os discos traziam os títulos das canções traduzidos para facilitar a vida do público consumidor que não entendia outros idiomas – ou simplesmente ganhavam apelidos bem brasileiros; quem faz ou fez comércio ou colecionismo de discos conhece “o Rolling Stones do bolo”, “o Slade da orelha”, “o disco dos Beatles atravessando a rua”, “o Pink Floyd do prisma”, “o AC/DC do canhão” ou “o Rush do parafuso”. Com canções estrangeiras e seus títulos estrangeiros ininteligíveis e impronunciáveis não haveria de ser diferente. Até onde sei, foi em 1973 que saíram os primeiros discos com títulos abrasileirados para “melôs” de alguma coisa.

 

O primeiro que vi foi “Witch Doctor Bump” com The Chubukos, bem mais conhecida como “Melô do Pato” por incluir uma vocalização que lembrava o conhecido bicho. Aí veio o dilúvio: “Melô do Trem” (“Express” com o B. T. Express), “Melô do Banjo” (“I’ll Be Holding On” de Al Downing), “Melô do Puladinho” (“Rock Your Baby”, o grande hit de George MacRae), “Melô da Noturna” (“Party Freaks” com Miami), “Melô da Primavera” (“Lluvia de Primavera” de Bebu Silvetti), “Melô Motel” (“La Prima Volta” com Andrea & Nicole), “Melô do Macaco” (“Baboo Baboon” com a Big Baboon Band), “Melô das Palmas” (“Cocomotion” com El Coco), “Melô da Criança” (“A Little Love And Understanding” com o guri cantor Adrian), “Melô Sexy” (“Je T’Aime… Moi Non Plus” no arranjo reggae do Judge Dread), “Melô do Topless” (“Reachin’ Out (For Your Love)” com Lee Moore), “Melô do Tubarão” (“Super Jaws” com Seven Seas), “Melô do Riso” (“Think What You Like” com Somebody, já que falei em bom humor…) e, anos 1980 adentro, “Melô do Flipper” (“The Smurf” de Tyrone Brunson – a gravadora brasileira conseguiu confundir os personagens Flipper e Smurfs, ex-Strunfs…), “Melô do Doce” (“Ms. Sassy, Frassy, Classy” com Venus Starr), o megahit “Melô do Da Da Da” com o Trio… para citar apenas as de que me lembro agora. E como a indústria cultural nunca usa uma mesma boa ideia apenas uma vez, tivemos uma outra “Melô do Pato”: “Disco Duck” com Rick Dees & His Cast Of Idiots, lançada em 1977 e fazendo muito mais sucesso que a outra. (E ambas as “Melôs do Pato” tiveram grande impulso de nossa gravadora Som Livre, a dos Chubukos na trilha da novela Supermanoela e no LP Sua Paz Mundial Vol. 2 e a dos Idiots no LP The Frenetic Dancing Days.)

 

Não faltaram nem faltam melôs brasileiras, apenas algumas sendo “Melô da Borboleta” com Ponto & Virgula, “Melô da Pipa” (“tá com medo, tabaréu?”) com a banda Super Bacana, “Melô do Aplauso” com os Tarântulas, “Melô da Vaca” com Nenéo, “Melô da Rádio” com a armação infanto-juvenil Play-Ground, “Melô do Casamento” (“Week by Week” com o Sunday), “Melô da Estudante” (no lado-B de “Tempo de Estio” do bonitão Marcelo), “Melô do Tacka-Tacka” com Nahim, o megahit “Melô do Marinheiro” dos Paralamas… Um certo Toty e a incerta Gretchen atacaram no atacado e lançaram muitas “Melôs” disto e daquilo, assim como Sly Foxx, reggaeiro jamaicano radicado no Brasil que lançou até uma “Melô do Maluco Beleza” (esta canção de Raul em ritmo reggae e em inglês). Talvez duas outras – ambas por sinal do mesmo ano, 1980 – mereçam menção especial. Uma é “Melô do Tagarela”, sátira ao rap lançada por Miele, o humorista dos trajes sofisticados. A outra é “Melô do Mão Branca”, sobre um lendário justiceiro brasílico (ou muitos que usaram esse pseudônimo), do Gerson King Combo. (Houve também outra “Melô do Mão Branca”, e estrangeira: “Christmas Rappin’” – sim, o mítico Bom Velhinho foi preterido pelo justiceiro misterioso – com Kurtis Blow, de 1979, curiosamente lançada no Brasil pela mesma gravadora de nossa “Melô do Mão Branca”, a PolyGram). Temos ainda a sátira político-econômica “Melô da Economia”, lançada pelo Premê em 1985 e com duplo sentido no título e num dos versos (“resultado: melô”). E um dos primeiros usos brasileiros da palavra “melô” que conheci foi visual, num cartum de Mollica para a revista Rock, A História e a Glória (mais exatamente, o Jornal de Música e Som) em 1976.

 

E não podemos terminar este texto sem lembrar dos famosos nomes/apelidos burlescos que revelam significados acidentais e inesperados em canções, como a “melô do pinto de Piracicaba” (“Più” com a Gal Costa italiana, Ornella Vanoni), a “melô do leproso” de Hyldon (“jogue suas mãos para o céu”), idem de Chico Buarque (“oh, pedaço de mim”), a “melô da pulga” da bregaça Joanna (“vou te caçar na cama sem segredos”), a “melô do cocô” de Ivan Lins (“você foi saindo de mim”)… Nem Ary Barroso escapou, ganhando postumamente uma “melô do pavão vaidoso” (“eu queria um minuto apenas/pra mostrar minhas penas”).

 

Realmente, nada melhor que começar e terminar um texto com bom humor..

 

(matéria sugerida por Emilio Pacheco)

Ayrton Mugnaini Jr.

Ayrton Mugnaini Jr., paulistano de 1957, é de tudo: jornalista, compositor, escritor, pesquisador de música popular, autor ou colaborador de mais de 20 livros sobre artistas como Adoniran Barbosa, Raul Seixas, Elis Regina e a banda Queen e assuntos como música sertaneja e rock brasileiro. Co-produz o programa Rádio Matraca, na USP FM. Foi integrante da banda Magazine, de Kid Vinil. Integra a diretoria do Clube Caiubi de Compositores. É compositor do grupo Língua de Trapo, além de integrante d’A Banda de Tato Fischer e maestro da banda do Sarau do Circo, do Centro de Memória do Circo. Autor das primeiras grandes pesquisas sobre música e circo e festivais de música. E faz questão de arrumar tempo para colaborar no Célula Pop.

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