Pharoah Sanders e Floating Points contra os males do mundo

 

 

Floating Points, Pharoah Sanders e The London Symphony Orchestra – Promises

Gênero: Jazz, instrumental

Duração: 46 min.
Faixas: 9
Produção: Sam Shepherd
Gravadora: Luaka Bop

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

 

Há quanto tempo você não ouve um disco que te emocione? Mesmo sendo obrigado a ouvir música nova/velha/nova constantemente, confesso que a emoção – outrora relativamente abundante – me tem escorrido pelos dedos. Por isso, quando dou de cara com uma obra como “Promises”, ela vem forte, não só pela beleza da coisa, mas pelo absoluto ato de resistência aos mecanismos massificantes da música em nosso tempo. É um lançamento que não visa o lucro, não visa a fama, pelo contrário, é um álbum que busca usar a música como um veículo para transmitir pulsos que vão para muito além dos nossos ouvidos. Perceber os sons que esta obra contém, é, automaticamente, sair da nossa realidade banal/cruel para uma via auxiliar de espírito, beleza e completude. “Promises” cumpre o que promete. Totalmente.

 

Vejamos os envolvidos: Sam Shepherd, 34 anos, atende pelo nome de Floating Points, e é um desses investigadores sonoros, que entende a música eletrônica como um caminho convidativo e sem volta, que amplia nossa perspectiva. Seu ofício é usar ambiências diversas – house, techno – e misturar com perspectivas de música mais clássica, orquestral. Ao seu lado está Pharoah Sanders, 80 anos, saxofonista mitológico do chamado spiritual jazz. Tocou com a Sun-Ra Archestra e com John Coltrane, quando este adentrou sua própria fase transcendental. Após sua morte, foi Sanders quem herdou o cajado do estilo e seguiu adiante. E, fechando a tampa, está a London Symphony Orchestra, cujo naipe de cordas está presente para compor o meio de campo do disco. O resultado, gente, é arrasador.

 

São nove movimentos. Shepherd vai na frente, criando as texturas de teclados e sintetizadores que vão povoar o álbum até seu final. Ele não esbanja notas, pelo contrário, vai na melhor escola minimalista e adorna o panorama com poucas pinceladas. Logo em seguida vem Sanders, cujo saxofone tenor é uma das sonoridades mais cálidas que se tem notícia. Ele também começa devagar, sentindo o terreno, entendendo o contexto, se posicionando. Em alguns momentos a sutileza é tão grande que é possível ouvir a respiração do homem, antes do sopro que se transforma em som. E que som. São passeios pelo mais alto possível e pelo mais próximo do chão concebível, tudo como quem sai pra passear de manhã. E a London Symphony Orchestra se junta ao som quase imperceptivelmente, mas, quando nos damos conta, violinos e outros instrumentos de cordas já estão na paisagem de forma definitiva, chegando até a liderar o contexto em alguns momentos.

 

Este tipo de obra não contém singles ou faixas isoladas. Ainda que haja a divisão em nove partes, “Promises” é uma coisa só, um longo e plácido movimento de 46 minutos. Durante sua execução, o mundo parece mais tangível e justo. E é feita uma fusão pouco possível há algumas décadas: a música orquestral, a música eletrônica e o jazz, todos juntos, gerando um resultado novo, nada derivativo, nada superficial. É uma pequena e silenciosa revolução, que justifica um termo que não vejo há muito tempo: “healing music”, ou seja, “música que cura”. Se estamos doentes de mundo, de Brasil, de covid-19, “Promises” é um caminho extremamente convidativo e ensolarado, ao longo do qual bate aquele vento fresco, que dá a impressão de paraíso.

 

Quase esqueço: além dos três integrantes mencionados, não podemos esquecer David Byrne, cuja gravadora, Luaka Bop, vem trazendo a melhor música feita no planeta desde o início dos anos 1990. “Promises” é fora da escala, hors concours, fora da curva. Ouçam para o próprio bem.

 

Ouça primeiro: o disco todo.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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