Lucy Dacus sem medo de ser cringe

 

Lucy Dacus – Home Video

Gênero: Folk alternativo

Duração: 45:41 min.
Faixas: 11
Produção: Lucy Dacus, Colin Pastore, Jacob Blizard, Jake Finch
Gravadora: Matador

 

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

 

 

Há cerca de um mês, Lucy Dacus completou 26 anos. Este seu terceiro álbum, “Home Video”, é um profundo mergulho em lembranças de sua adolescência, que, bem, aconteceu já neste século 21, ou seja, tendo em vista o fluxo etário-tempo-virtual, via redes sociais, Lucy é dessa galera que olha pras suas reminiscências e, dependendo do que vê, diz que isso ou aquilo é “cringe”. A gente aprendeu que o termo, oriundo do verbo em inglês, significa ter vergonha ou sentir embaraço por algo que é íntimo e pessoal e que, a partir disso, já denota uma certa idade: uma roupa, o gostar de uma série ou filme, uma atitude diante de algo. Sendo assim, por exemplo, gostar do seriado “Friends” é um gostar “cringe” e por aí vai. O fato é que Lucy está além desta noção e já é uma baita artista com tão pouca idade. Sua música sempre foi confessional, mas agora ela pisa mais fundo neste terreno e empresta ao seu folk alternativo algumas tinturas mais pop, que lhe fazem muito bem. “Home Video” é isso, uma fita VHS sendo revista no videocassete da memória.

 

Lucy é de Richmond, Virginia. Sua infância e adolescência foram vividas lá, em meio a um background religioso/careta, que influenciava tudo. Logo, sua vida orbitou a igreja local, o grupo jovem da igreja local e demais segmentações dessa lógica de existência com pouco espectro. A questão religiosa influenciou ainda mais o surgimento de um temperamento reservado e reprimido, algo que as canções do álbum refletem com precisão. Basicamente são contos de arrependimento pelo que não se viveu, pelo que não se fez e pelo que se lamenta ter feito. É a mesma lógica que nos assombra, o que faz de Lucy uma menina humana e cheia de sentimentos represados, os quais parecem ser alvo de certa epifania dentro dessas canções. E há espaço para momentos mais e menos lentos, mais e menos sentidos, verdadeiras páginas de diários arrancadas e vertidas em som. Aliás, outro dia mesmo, Lucy postou em seu perfil no Instagram uma foto com todos os seus diários desde os sete anos, o que só comprova o quanto ela preza este ato de exposição e debate sobre atitudes e desejos. Para uma mulher bissexual não deve ter sido fácil equilibrar tal orientação com a fé religiosa a que foi submetida desde tão cedo.

 

Sempre é legal ver artistas que optam por falar de suas vidas em suas obras, ainda que isto custe bastante em alguns casos. O resultado, no entanto, é quase sempre bem compensador. As canções de “Home Video” conseguem transmitir essa verdade e se saem bem tanto nos momentos mais lentos e contemplativos, quanto nas estruturas mais dinâmicas. A faixa de abertura, por exemplo, “Hot & Heavy”: começa lentinha e sentida, para depois pegar carona num bólido em alguma highway idealizada, rumo a um destino de expiação, tal qual uma versão teenager do Bruce Springsteen de “Born To Run”. Nesta opção por um arranjo mais fluido, Lucy evoca bastante influência do Fleetwood Mac de Stevie Nicks, talvez o porto mais seguro para as cantoras de sua geração. Em “First Time”, outro momento de velocidade, no entanto, Lucy já coloca algumas guitarras sujinhas e pega emprestada alguma fluidez noventista e simpática, mas ainda com tons de Mac em algum lugar, aqui e ali.

 

A crônica suburbana de “VBS” é adorável, trazendo verões passados em acampamentos, em meio a disputas de canoagem e outras coisas tipicamente americanas, mas também com estudos bíblicos entremeados e conselhos como “A preacher in a t-shirt told me I could be a leader” (“um padre vestindo camiseta me disse que eu poderia ser uma líder”), ou seja, tudo bem confuso para uma adolescente. Aliás, há momentos em que Lucy usa até alguns elmentos da própria adolescência como parâmetro. O autotune presente em “Partner In Crime” é um bom exemplo, ainda que seja em “Brando” que o bicho pegue. O arranjo evoca algo que poderia ser até de Taylor Swift em seus momentos mais reflexivos e a letra vai novamente para a dualidade entre sexo e sagrado, tudo sob os olhos de uma jovem de 20 e poucos anos.

 

“Home Video” é uma declaração ousada. Lucy Dacus olha para seu passado sem julgar seu eu mais jovem, explorando anos de rigidez e repressão com empatia e cuidado. Embora ela seja implacável em sua descrição de memórias perturbadoras, ela nunca se envolveu em ciclos de tristeza. Ela dá aos ouvintes permissão para se livrar das crenças que sustentavam quando crianças e mergulhar de cabeça nas águas do futuro. Um disco bem legal e nada cringe.

 

Ouça primeiro: “Brando”, Hot & Heavy”, “First Time”, “VBS”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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