Keane, muito melhor que Coldplay
Hoje, dia 12 de novembro, o Keane estará se apresentando em Montevidéu, capital do Uruguai. O grupo inglês cumpre assim mais uma escala de sua turnê sul-americana de comemoração dos vinte anos de “Hopes And Fears”, seu disco de estreia, que o colocou no mapa sonoro do planeta. Esta perna se encerra em 23 de novembro, quando a banda terá percorrido Argentina, Paraguai, Chile, Peru e Colômbia, e compreendeu três apresentações no Brasil, em Rio, São Paulo e Curitiba, com ótimos públicos. No caso do show do Rio, ocorrido em 7 de novembro, os ingressos esgotaram-se ainda em março, algo notável para a atual fase econômico-cultural da capital carioca. A ideia vigente na época do lançamento de “Hopes” era a seguinte: ou sua banda se posiciona na herança do Radiohead de “Ok Computer”, se apropriando da ambiência e modificando o que há de antipop, substituindo por algum elemento mais palatável ou se posiciona dentro do revival pós-punk levado por Strokes e sua turma, com uma terceira coluna surgindo a partir de outro revivalismo, o do rock meio garageiro, meio Led Zeppelin, proposto pelo White Stripes. O Keane foi se aconchegar no mesmo nicho de gente como Travis, Coldplay, Muse, Starsailor e similares, que, naquela altura, já tinham tamanhos e corpos diferentes. Dessa turma melancólica, pianística e intensa, sabemos bem que o Coldplay foi o mais bem sucedido em termos comerciais, com o Muse – sumido há alguns anos, mas dominante nos anos 2010 – vindo logo atrás. Ao Keane coube um confortável meio de tabela, no qual pode desenvolver-se esteticamente, ousar e manter-se focado no que sempre soube fazer de melhor: música.
A gente sempre pondera, quando o assunto é Coldplay, sobre a qualidade dos primeiros álbuns da banda – “Parachutes” (2000) e “A Rush Of Blood To The Head” (2002). Além de bons trabalhos, estes discos serviram para influenciar essa nova-novíssima leva de bandas que começaram a gravar logo no início do milênio e o Keane talvez tenha sido um dos mais dedicados discípulos dessa sonoridade, que consistia em canções impulsionadas por pianos e teclados, dinâmica variável entre o lento e o rápido, vocais desesperados e refrãps tendendo para o apoteótico. Tom Chaplin, vocalista do Keane, certamente é um dos mais bem treinados cantores desse tipo de canção. Quando surgiu, parecia que suas cordas vocais iriam explodir a cada interpretação devotada das criações do Keane. Além dele, compõem a banda o tecladista-pianista e cérebro sonoro, Tim Rice-Oxley e o baterista Richard Hughes. O baixista Jesse Quin juntou-se ao trio original em 2011, depois de ter participado das gravações do terceiro álbum, “Perfect Symmetry” (2008) e do EP “Night Train” (2010), sendo efetivado em seguida.
Tendo esses dois primeiros álbuns do Coldplay, além de “Zooropa” (1993), do U2 e dos três trabalhos iniciais do Radiohead (“Pablo Honey”, 1993; “The Bends”, 1995 e o já mencionado “OK Computer”, 1997) como base, o Keane adicionou uma dinâmica própria ao modelo de canção criado por essa galera – algo mais forte, mais emotivo, mais ingênuo, mais romântico, talvez, calcado na dinâmica das apresentações de Rice-Oxley, tocando em pé seu piano e da voz possante de Chaplin. E, claro, por conta das ótimas canções que a banda inseriu em seu primeiro disco, o já mencionado “Hopes And Fears”, que fornece quase a totalidade do repertório dos shows que a banda vem fazendo ao redor do mundo. Sua presença na América Latina (estarão também em El Salvador em dezembro e no México em março do ano que vem) mostra bem o alcance do sucesso que o grupo obteve. Em 2004, quando o álbum foi lançado, “Somewhere Only We Know” chegou como uma bomba nas rádios e MTV. Além dela, “This Is The Last Time”, “Everybodys Changing”, “Bedshaped” e “Bend & Break” foram sucessos consideráveis.
A banda demorou apenas dois anos para gravar um sucessor e, quando o fez, chegou ao ponto máximo de criatividade e excelência. “Under The Iron Sea” chegou com canções ainda mais belas e instigantes, que, se não chegaram a tocar tanto como os hits anteriores, fizeram bonito. “Atlantic”, “Is It Any Wonder?”, “Nothing In My Way”, “Leaving So Soon?”, “Crystal Ball” e “The Frog Prince” fazem um meio campo pra lá de respeitável e ajudaram a forjar essa marca sonora indelével do Keane. Confesso que este é meu disco preferido da banda e um dos mais queridos dessa primeira década do novo milênio, justo pelo nível das composições, todas belas e bem produzidas/arranjadas.
Estes dois álbuns são a mola-mestra da atual turnê do Keane. Não por acaso, visto que, a partir do terceiro disco, “Perfect Symmetry”, de 2008, o grupo ensaiou uma mudança estética rumo a um pop oitentista mais amplo, no sentido Duran Duran/Bowie do termo, incorporando pela primeira vez o uso da guitarra nos arranjos. Ainda que “Spiralling”, a faixa-título e “The Lovers Are Losing” tenham feito certo sucesso, a intensidade já era diferente. O mesmo aconteceu com o EP “Night Train”, lançado em 2010. A banda só conseguiu reeditar o prestígio dos primeiros dias com o álbum seguinte, “Strangeland”, de 2012, que trouxe algumas belas canções que atestavam a permanência do talento de Rice-Oxley e Chaplin na composição. “Silenced By The Night”, “Disconnected” e “Sovereign Light Café” mantiveram a força do Keane nas paradas de sucesso e, à medida em que o Coldplay fazia experimentos pop e mudava sensivelmente seu som, o inverso provou ser o indicado para o Keane: o público queria mais e mais que a sonoridade inicial fosse preservada. A banda entendeu a mensagem e, mesmo demorando mais sete anos para voltar ao estúdio, lançou um bom trabalho com “Cause And Effect”, que gerou bons hits médios como “Love Too Much” e “The Way I Feel”.
O Keane não é uma banda grande, ainda que tenha fama mundial. Seu escopo é meio paradoxal, porque, mesmo que seja um exemplo de artista desvinculado dos enormes espaços e festivais bombadíssimos, de vez em quando se apresenta em lugares como o Glastonbury e tem faixas ouvidas aos milhões nos serviços de streaming. Com o passar do tempo, seus dois primeiros trabalhos adquiriram um status de ótimos discos, justo por mostrar capacidade criativa e talento de compositores, materializado em ótimas canções que se mantiveram vivas e fortes com o tempo. Relatos sobre o show do Rio dão conta de que o quarteto estava realizado no palco, realmente se divertindo e concedeu uma deferência considerável ao público: tocou “The Frog Prince”, faixa sensacional do segundo disco, algo que não acontecia desde 2013. É bacana pensar que os shows do Keane não têm nada exceto música. Nada de pulseiras coloridas, serpentinas, pregações messiânicas e efeitos constrangedores. Parece que, neste caso, a música foi suficiente para a sobrevida de uma banda cuja característica maior parece ser, afinal de contas, a honestidade com sua arte. Se você não conhece o Keane e quer começar a gostar dos sujeitos, vá direto a “Hopes And Fears” e “Under The Iron Sea”. Eles vão te fazer companhia por muito tempo.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.