Trinta e cinco anos. Quatro estações.

 

 

Quem estava vivo em outubro de 1989 lembra bem do lançamento de “As Quatro Estações”, o quarto e novíssimo álbum da Legião Urbana. A expectativa era imensa, não só pela importância do trabalho da banda de Brasília, mas pela competição: Os Titãs haviam lançado “O Blesq Blom” e os Engenheiros do Hawai soltaram o ao vivo “Alívio Imediato” menos de um mês antes, enquanto os Paralamas do Sucesso viriam “Big Bang” em novembro. Ou seja, entre outubro e novembro, as quatro maiores e mais importantes bandas do Brasil estavam em plena atividade fonográfica. Além delas, o guitarrista Edgard Scandurra, do Ira! (a quinta participante deste time seleto) estreara como artista solo com o belo álbum “Amigos Invisíveis” em fevereiro do mesmo ano. E Cazuza, que optara por não esconder de ninguém sua condição por conta da AIDS, colocara nas lojas o duplo “Burguesia”. Em que pese a importância destes artistas em seu tempo, é digna de nota a presença de três novos postulantes do rock nacional naquele momento: Inimigos do Rei, Nenhum de Nós e os cariocas do Uns e Outros, todos com sólido desempenho nas paradas com seus hits “Adelaide”, “Uma Barata Chamada Kafka”, “Astronauta de Mármore” e “Carta Aos Missionários”. Além de toda essa galera, Biquini Cavadão, Lobão, Kid Abelha, Jorge Benjor, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ultraje a Rigor, João Penca, todo mundo lançou disco naquele ano. O cenário era de disputa palmo a palmo pelo protagonismo e a Legião Urbana vivia uma situação peculiar na época.

 

Aliás, se pensarmos em 1989 para Renato Russo, veremos que foi um ano bastante importante. Ele foi pai, anunciou em público sua opção sexual e viu sua banda perder o baixista Renato Rocha com as gravações de “As Quatro Estações” já iniciadas. Além disso, o país vivia a campanha eleitoral para Presidente da República, a primeira desde 1964, em meio a uma crise econômica sem precedentes. Tudo era urgente, definitivo e importante e Renato ainda se recuperava do incidente ocorrido em 18 de junho do ano anterior, quando o grupo se viu atingido em pleno palco montado no Estádio Mané Garrincha, em Brasília, diante de um público de 50 mil pessoas. Equipamentos quebrados, sustos, traumas, toda uma experiência estranha na cidade natal da banda quase fizeram o vocalista e líder da Legião desistir de tudo, além de causar uma demora considerável no processo criativo da banda, atrasando “As Quatro Estações” em mais de um ano. Mais ainda: as canções que Renato compusera ao longo da vida e nos primeiros momentos de Legião já se haviam esgotado nos dois primeiros álbuns. O terceiro, “Que País É Esse?” dava uma bela revirada no baú das composições da virada dos anos 1970/80, com exceção para “Angra dos Reis”. Ou seja, a Legião estava sem ter o que gravar.

 

Entre julho de 1988 e agosto de 1989, a banda e mais o produtor Mayrton Bahia viveram momentos intensos ao dar vida às canções do álbum. Nada estava decidido ou previsto e Renato teve que recomeçar. Só que ele não era mais o sujeito do início daquela década, pelo contrário. Confirmando a máxima de que não há nada mais antigo que o passado recente, os primeiros esboços de canções apontavam para situações melódicas totalmente novas e que foram sendo gravadas e registradas no momento em que surgiam, sem tempo para planejamentos mais elaborados. Mayrton, por sua vez, vivia situação complicada como produtor freelancer que prestava serviço para a EMI-Odeon. Até poucos meses antes, ele era um prestigiado funcionário efetivado da companhia, mas seus vencimentos elevados fizeram com que “fosse convidado” a ocupar uma posição diferente. Por conta disso, empatou seus adiantamentos no processo e ficou à míngua antes de tudo terminar. Mesmo assim, ele trouxe um maquinário de ponta para o estúdio – samplers, teclados, instrumentos – além de ter carta branca da companhia para gastar todo o tempo necessário para que Russo parisse as novas canções. Depois de um início complicado e estéril, as primeiras composições começaram a surgir.

 

Vendo com olhar de hoje, “As Quatro Estações” gerou alguns dos maiores sucessos radiofônicos da carreira do grupo. A dupla “Pais e Filhos” e “Monte Castelo” tocou em todas as rádios do país e ganhou até o público que não se importava com a Legião ou mesmo com o rock nacional. Ambas são bem diferentes de tudo o que haviam feito até então, com detalhes para as guitarras de “Pais” e os teclados sinfônicos de “Monte”, sem falar nos temas das letras. A primeira fala de suicídio – de uma prima de Renato -, amor paterno, amor de filho, amor familiar, e a segunda cita a Bíblia e prega que só o amor pode unir as pessoas. De passagem, o título homenageia um tio que lutou na campanha da FEB na Itália. No terreno das novidades estéticas e inéditas, “Feedback Song For A Dying Friend”, com letra em inglês e falando sobre jovens à beira da morte, chegou a contar com elegante e chique tradução de Millor Fernandes no encarte do álbum, algo que era absolutamente desnecessário diante da fluência de Renato no idioma. Outra situação inédita: “Meninos e Meninas”, canção na qual Renato admite e fala de sua preferência sexual, foi a primeira do grupo a entrar numa trilha sonora de novela global, mais precisamente, “Rainha da Sucata”.

 

Outra canção que fez muito sucesso no rádio foi “Quando O Sol Bater Na Janela Do Seu Quarto”, que tem arranjo belo evocando o folk rock que a banda adotara como elemento definidor ainda no álbum “Dois”. Aqui, no entanto, a pegada é mais clássica e há timbres que lembram de bandas como Byrds, além de uma ótima performance do vocalista em meio a este clima eletroacústico. E a letra, otimista, fala sobre a força da crença no amor como meio de resistir a tudo de ruim. “Ainda temos chance, o sol nasce para todos”. Em “Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar”, a última do álbum, assim como quase todas de “As Quatro Estações”, Renato abraça o amor como saída para todos os problemas. O verso “Quando se aprende a amar//O mundo passa a ser seu” é, seguramente, um dos mais belos e derramados de sua lavra. E o amor também permeia as letras de outras canções, direta ou indiretamente. Em “Sete Cidades” ele chega a doer nos versos “Quando não estás aqui//Sinto falta de mim mesmo//E sinto falta do meu corpo junto ao meu”, tudo isso em um arranjo que seria banal se não fosse pelo bom uso da gaita harmônica. Em “Maurício” o amor dilacerado dá as caras em muitos versos tristes como “Já não sei dizer se ainda sei sentir//O meu coração já não me pertence” ou “Até pensei que era mais//Por não saber se ainda sou capaz de acreditar//Me sinto tão só e dizem que a solidão até que me cai bem”.

 

“Eu Era Um Lobisomem Juvenil”, minha preferida, não só do disco, mas de toda a carreira da Legião, Renato vai desfiando paisagens líricas que poderiam ser páginas de um diário: “Ontem faltou água, anteontem faltou luz//Teve torcida gritando quando a luz voltou//Não falo como você fala mas vejo bem o que você me diz”, para culminar no verso final: “Se você quiser alguém pra ser só seu//É só não esquecer, estarei aqui”. A meu ver, apenas duas faixas não têm o amor como seu elemento principal. O hit “Há Tempos” vai mais por um caminho adjacente, existencial, servindo como uma espécie de cartão de visitas para aquele novo Renato Russo, versão 1989, que estava ali, na porta do disco, recebendo os ouvintes. E a épica, fulgurante “1965 (Duas Tribos)”, com sua letra anti-ditadura civil-militar, marcando o ano do AI-2, que institucionalizou o golpe de 1964, dividindo o país nas “duas tribos” – a favor e contra – o que havia acontecido. “É o bem contra o mal//E você, de que lado está?”.

 

Posso dizer que este disco tem três das minhas mais queridas composições da banda, exatamente “1965”, “Maurício” e “Lobisomem”. Juntas elas meio que sintetizam a diversidade sonora que o álbum trazia, especialmente a última, na qual Mayrton Bahia colocou samples de sinos, Dado Villa-Lobos usou bandolim e Renato se saiu com um timbre de teclado entre o sacro e o progressivo. “As Quatro Estações” rendeu uma turnê nacional gigantesca e teve algumas apresentações gravadas direto da mesa de som, que, mais tarde, renderam o álbum “As Quatro Estações Ao Vivo”. Foi um “turning point” na vida de Renato e da própria banda, que precisou de mais músicos para tocar nos shows, a fim de reproduzir o espectro sonoro mais amplo que as gravações apresentaram. Quanto a Renato, a partir daí, sua vida entraria numa fase mais sombria e, por conta disso, ele ainda seria capaz de realizar três ótimos trabalhos com a banda, além de dois álbuns solo muito especiais. Dá pra dizer que tudo isso começou aqui, em “As Quatro Estações”.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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