Jovens veteranos independentes em ação

 

 

 

 

 

Hotel Avenida – Trilhas Sonoras para Corações Solitários
99′, 23 faixas
(Scream & Yell/De Inverno)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Lestics – Bolero #9
22′, 9 faixas
(Independente)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

Nei Lisboa, o genial trovador gaúcho, tem um verso muito bonito, em sua canção “Verão em Calcutá”, de 1987: “O tempo não tem dó de quem disfarça//A farsa das ribaltas”. Ainda que seja totalmente subjetivo – como boa obra de arte – eu gosto de pensar que este verso quer dizer que o tempo é especialmente cruel com quem se dispõe a aparecer num palco e, a partir dele, abrir seu coração. E acho que tudo nestes dois álbuns tem a ver com corações abertos: “Trilhas Sonoras para Corações Solitários” e “Bolero #9”. Imagine: uma “jam band” curitibana, que era meio que um projeto paralelo de várias pessoas, encerrada há mais de quinze anos, tem uma compilação de faixas lançadas em streaming. Na época – entre 2008 e 2010 – eu lembro bem, se anunciavam como uma mistura de folk, sertanejo e alternativo, num tempo em que não era nada coolzinho assumir essa influência. Seu nome: Hotel Avenida. E, além dela, uma veterana e adorável formação paulista de rock alternativo no seu sentido mais amplo, podendo até nem ser tão rock assim. Seus integrantes, hoje respeitáveis e jovens senhores na casa dos “enta”, refletem sobre a existência e tudo o que vem a partir dela, em canções singelas e vitais como o próprio ar que se respira. Seu nome: Lestics. Por conta de vários motivos, resolvi juntá-las neste texto. Explico.

 

Tanto a Hotel Avenida quanto a Lestics são parte de um ecossistema vital de circulação de informações alternativas no Brasil, o site/selo/zine/instituição Scream & Yell, capitaneado pelo amigo Marcelo Costa. A gente lia sobre elas, seus integrantes e suas outras bandas, seus discos, nas páginas digitais do site. Por mais que a gente escrevesse em outros veículos – e colaborasse várias vezes com o S&Y – era lá que a gente sabia e aprendia sobre essa geração indie dos anos 2000. Lembro de ler bastante sobre a banda “oficial” de Ivan Santos, OAEOZ, bem como saber alguma coisa sobre a carreira solo de Giancarlo Ruffato, entre outros paranaenses, no S&Y. Eram todos ótimos e a junção que a Hotel Avenida simbolizou parecia natural a olhos e ouvidos distantes como os meus. Eu sabia que aquela galera gostava de country alternativo, soul music, folk music, gente como Wilco, Ryan Adams, Jayhawks e, além deles, Bob Dylan e Bruce Springsteen. Era natural que fizessem algo que tivesse essa abordagem insolente do country como base e, a partir dela, juntasse as tinturas sertanejas (que hoje seriam chamadas “de raiz”) em canções lentas, cínicas, fingindo força diante da tristeza, como é o caso da maioria das faixas que a compilação “Trilhas Sonoras para Corações Solitários” traz.

 

As 23 faixas, compiladas e produzidas por Leonardo Vinhas, trazem o percurso empreendido pela Hotel Avenida entre os anos de 2008 e 2010, quando esteve ativa. São registros que cobrem não só o espaço de tempo, mas a oscilação de expectativas, gravações ao vivo, ensaios, revelando um painel amplo do que a banda poderia ter sido e parece unânime a impressão disso quando se ouve a totalidade das faixas: era para a Hotel Avenida ter ido longe. Era uma banda que poderia dar contexto para além de suas canções lentas e ótimas, como “Eu Não Sou Um Bom Lugar” ou “Só O Amor Pode Partir Seus Joelhos” ou “Cante-me Álcool”, covers de Lobão e Chitãozinho e Xororó, possivelmente com aquela que é uma das mais belas gravações do estilo sertanejo: “Nuvem de Lágrimas” (a outra é “Ainda Ontem Chorei de Saudade”, mas tudo bem) e soar lindamente. Estão presentes aqui as sete faixas contidas em “Rock de Inverno 7 Ao Vivo”, gravadas ao vivo com as presenças de Ivan Santos (voz, gaita e teclado), Giancarlo Rufatto (voz e violão), Carlos Zubek (guitarra), Rubens K (baixo) e Allan Yokohama (bateria). E tão estão aqui as gravações feitas para o EP “Acústico Mundo Livre FM”, de 2009, além de algumas inéditas, como “Hoje”, registrada no Wonka Bar, em Curitiba e outras. Baita realização.

 

 

 

 

Lestics, ao contrário da Hotel Avenida, jamais encerrou atividades. Pelo contrário. Desde 2007 a banda, que tem no álbum “9 Sonhos”, de 2007, o seu ponto de partida, volta e meia aparece. Sempre com um extremo bom gosto nas gravações e arranjos, Olavo Rocha e Umberto Serpieri são os pais da criança mas sempre foram bem liberais com participações e presenças externas. Com o tempo, mais um integrante fixo juntou-se à dupla: Marcelo Patu. Umberto, que havia deixado o grupo há tempos, desde o quinto álbum “História Universal do Esquecimento” (2012) está de volta para este novíssimo “Bolero #9”. Assim como o pessoal da Hotel Avenida, a galera da Lestics traz aquela marca do indie dos anos 2000, criada num tempo intermediário, que se derreteu entre a solidez do século 20 e a gororoba temporal que se provou este início de século 21. Ficaram adoravelmente presos àquele tempo, conservando um charme de perplexidade e inadequação silenciosas em relação ao que acontece hoje. São jovens velhos, que adquiriram, por cinismo ou falta de opção, a capacidade de compreender com rapidez e tristeza/desprezo a mecânica da pós-modernidade. Talvez Umberto e Olavo discordem, mas é o que parece.

 

A Lestics traz o paradigma de uma banda de sua geração para fazer rock alternativo de guitarras com influência folk e smitheana, a princípio. Suas canções e letras se tornaram totalmente pessoais e adaptáveis a várias situações, com espaço até para o surrealismo, caso da ótima “Elogio ao Desfibrilador”, que tem aura circense e irônica sobre a finitude. Tem ironia discretíssima em “Commedia de Bolso”, que tem um andamento lento e modorrento com ótimos baixo e guitarra, que adornam versos como “A felicidade sem fim//O prazer que nunca passa//Quando isso vira rotina//Acaba ficando sem graça//A dor, em compensação//Em sempre nova e cruel//É por isso que o inferno//É mais plausível que o céu”. E tem ótimos momentos com violões acústicos, como a belíssima “A Dança” e a faixa de abertura, “Correnteza”, que tem uma melancolia inevitável, algo belo e lindo de se ouvir.

 

Estes dois álbuns, que você pode conferir no streaming, mas também pode baixar de forma gratuita online, são dois manifestos de gente que construiu e constrói uma cena de música relevante e cheia de qualidade. Uma cena que ainda comporta as pessoas que a descreveram e descrevem, a ponto da gente se sentir parte. Um salve a todos os envolvidos, músicos ou não, que estão firmes e fortes. A memória desses anos é preciosa e segue sendo conservada no presente para o futuro.

 

Ouça primeiro:

Hotel Avenida – Trilhas Sonoras para Corações Solitários

“Eu não sou um bom lugar”, “Nuvem de Lágrimas”, “Hoje”

 

 

 

Lestics – Bolero #9

“Correnteza”, “Commedia de Bolso”, “A Dança”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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