Bruce Springsteen – Letter To You

 

 

Gênero: Rock

Duração: 58 min.
Faixas: 12
Produção: Ron Aniello, Bruce Springsteen
Gravadora: Sony

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

Digo isso com o maior respeito e admiração possíveis: Bruce Springsteen envelheceu. Aos 71 anos – que não aparenta ter – o Boss já vinha num mood reflexivo há tempos. Pudera: perdeu dois amigos-irmãos de E Street Band nos últimos doze anos: Danny Federici (organista) e Clarence Clemons (saxofonista). Além deles, perdeu George Theiss, companheiro de sua primeira banda, The Castiles, em 2018. Terminou de escrever uma autobiografia/ em decorrência dela, entabulou um show na Broadway em que revisita sua vida e, como se não bastasse, gravou “Western Stars”, um disco sobre a solidão e a resiliência, tendo o pop classudo e countrypolitan do fim dos anos 1960 como fio condutor. E ele virou um filme também. Depois de tudo isso, o resultado musical não poderia ser diferente de  “Letter To You”, um disco sobre o passar do tempo, a contemplação da vida e da morte, a ciência de que somos pouco ou quase nada nesta grande ampulheta que é a existência humana. Se é pra fazer algo em música que corresponda a tudo isso, o Bruce de 2019/2020 é uma das melhores pessoas mais credenciadas para fazê-lo. Em doze faixas, ele escancara o coração e o joga em nossa direção. Sorte.

 

Ele reuniu os amigos de E Street Band e levou-os para sua casa em Asbury Park, New Jersey. Lá eles ficaram por quatro dias gravando as doze faixas de “A Letter To You” e, no quinto dia, ouviram tudo e viram que o álbum estava pronto. Ao longo do processo, a banda tocou tudo ao vivo no estúdio, produzida por Bruce e por Ron Aniello. Além da passagem do tempo e dos ensinamentos que sua percepção traz, o Boss também trata de um assunto muito caro a ele em “Letter To You”: o rock e o que ele pode significar para as pessoas. No seu caso, Bruce sempre diz da importância que as canções que ele ouvia no rádio tiveram na formação de seu próprio caráter. Educado por Beatles, Supremes, Curtis Mayfield, entre vários outros artistas dos anos 1960, ele ressalta a importância que a música pode ter no mundo de hoje, não só como passatempo ou produto, mas como algo que induz o próprio estado de espírito das pessoas, as transforma e prepara no enfrentamento dos desafios da vida e da própria existência. E nada melhor que um ano cascudo como 2020 para colocar isso à prova.

 

A moldura sonora que o álbum traz é a pegada que a E Street Band forjou no seu período pós-2000, ou seja, um rock clássico, bem talhado, cheio de guitarras e teclados, alicerçado na ótima cozinha de Max Weinberg e Gary Talent. Este padrão é ouvido ao longo das doze faixas e a pungência que o tema conceitual traz para as canções torna “A Letter To You” tão ou mais belo que “The Rising”, até então o melhor lançamento de Bruce no novo milênio. Belas músicas surgem ao longo do caminho e é total a noção de que estamos diante de um set muito bem pensado de faixas, ordenadas minuciosamente e muito bem escritas. Algumas delas estão entre as mais interessantes composições de Bruce desde “Born In The USA”, podendo pleitear um lugar de destaque entre os seus muitos clássicos. Além disso, uma audição cuidadosa revela que o repertório do disco é totalmente pensado para ser tocado ao vivo, já deixando uma expectativa enorme nos fãs para quando o Boss retornar aos palcos.

 

Os singles – “Ghosts” e a faixa-título, estão entre as melhores faixas do álbum, sendo que a primeira é um clássico. Feita sobre a partida de pessoas queridas e o vácuo que lhes toma o lugar, “Ghosts” é toda cheia de riffs de guitarra e chega a lembrar algo que Tom Petty poderia ter feito nos anos 1990. Vigorosa e séria, ela é a estrela do disco, mas há espaço para outras ótimas canções. “Rainmaker” é sobre os espertalhões que se aproveitam das pessoas que querem acreditar numa solução para seus problemas e são ludibriadas por gente de má fé, que se aproveita de seu desencanto/desespero para se dar bem. “House Of A Thousand Guitars” é sobre o poder do rock sobre a nossa existência, enquanto “If I Was The Priest” brinca com a necessidade de progresso nos dogmas religiosos, especialmente o católico, fé da qual Bruce é praticante fervoroso desde sempre. “Last Man Stading” é a constatação da mortalidade a partir do caso de George Theiss, enquanto “The Power Of Prayer” é mais uma daquelas deliciosas concessões de Bruce ao pop ensolarado sessentista.

 

Cheio de belas canções, amarrado por um conceito muito justo e bem pensado, pleno de relevância e fazendo jus ao passado/presente/futuro do Boss, “Letter To You” é, de fato, uma carta aberta a quem se dispuser a ouvir as reminiscências de um dos maiores heróis da canção americana nos últimos 50 anos. Quem o fizer, será recompensado com verdade, talento e amor.

 

Ouça primeiro: “Ghosts”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

4 thoughts on “Bruce Springsteen – Letter To You

  • 3 de novembro de 2020 em 16:36
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    Opa, Edmilson! Obrigado pelo comentário, rapaz. De fato, é o melhor disco do Boss desde The Rising.

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  • 23 de outubro de 2020 em 12:02
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    Como fã absoluto do Bruce, eu fico muito feliz quando vejo uma matéria bem embasada sobre um disco dele, principalmente aqui nas Brazucas, que no geral, não dá muita atenção para o cara. (Tem um jornal online grandão aqui que publicou sobre o disco – é mais o serviço que a crítica – … e a meia página dedicada a ele está com uns 4 erros bem feinhos…)

    Parabéns pelo ótimo texto. Não é por “falar bem”, mas é por falar corretamente, com propriedade. E ajuda, claro, que o texto seja de quem gostou.

    Ainda não tive coragem de ouvir o disco… é muita ansiedade.

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    • 23 de outubro de 2020 em 16:22
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      Edmilson, obrigado pelas palavras gentis! Vá ouvir logo! É uma beleza de trabalho. Quanto aos veículos tradicionais de música aqui no Brasil, recomendo fortemente deixá-los de lado e concentrar nos independentes, que estão fazendo um trabalho admirável, sob vários pontos de vista. Abraço.

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      • 3 de novembro de 2020 em 14:26
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        Olá, Carlos Eduardo. Muitos dias depois… o disco está ouvido, digerido e… amado. Um baita disco. Coisa de gente grande com espírito de jovem… não só pelas 3 canções antigas… pois Burnin’ Train é uma das coisas mais vigorosas que ele gravou em anos, uma música que muita banda jovem daria a vida prá ter feito. – Discaço. Eu amo Western Stars (toca em casa TODA SEMANA desde junho do ano passado). Mas esse aqui é realmente um dos melhores desde “The Rising”. Abraço.

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