“Inhamuns”, de Kah Dantas: do Sertão para todos nós

 

 

A preposição sobre geralmente é a primeira da qual lanço mão ao escrever a resenha de algum livro: ele é sobre tal personagem, tal assunto, tal relato. Já a lugar da preposição para é um pouco mais íntimo. A ela reservo os livros que me tocam como se escritos para mim, para pessoas que conheço, entendo, que gostaria de ouvir ou até mesmo consolar. Para pessoas que fizeram parte da minha vida por segundos ou continuam nela mesmo que não nos olhemos mais.

 

Pessoas, mulheres invisibilizadas pela estranheza com que foram julgadas, pela incompreensão social dos seus anseios: para elas dedico a resenha de Inhamuns, o primeiro romance da autora Kah Dantas, também escritora do livro “Boca de cachorro louco”, que já resenhei aqui.

 

 

Seres como sua protagonista, uma jornalista cearense que mora em Porto Alegre e precisa retornar à região de Inhamuns para fazer uma reportagem importante e é empurrada de encontro ao passado do qual ela fugiu para sobreviver.

 

Kah não batizou sua personagem principal, mas os nomes dos seus sentidos em relação ao que foi deixado em sua terra são conhecidos, expostos, rasgados: o desejo pelo melhor amigo/amor de infância e adolescência, o trauma de criança maltratada pela tia rancorosa, a dor do abuso e do silêncio que escondeu a vergonha e a culpa, a saudade dolorida do amor forjado a dificuldades e a dureza da Avó, que a criou depois da morte da Mãe.

 

Safada, desavergonhada: assim a Mãe é conhecida, lembrada, pela identidade concedida às mulheres que amam além dos perímetros traçados pelas mãos invisíveis e pesadas do paternalismo e do machismo.

 

Supremo sacrifício ou supremo julgamento: entre o labirinto de poucas escolhas femininas e sob o signo de suas ancestrais, a personagem principal sente o solo da infância queimar os seus pés, os olhos, a pele e ser testemunha da sua entrega ao amor deixado apenas do lado de fora do ônibus que a levou para longe dali, aos 16 anos. Seu custo terá o preço dos vultos transmutados em fantasmas, dos desaparecimentos, das mortes compartilhadas.

 

“Se eu pudesse, tinha largado o coração à margem da estrada, para sangrar o que lhe restava de vida e apodrecer diante do verde que resistia, sobrevivente, pelo meio dos rochedos e para dentro dos boqueirões. Mal sabia que brincava com o estigma fatal do meu destino, já previsto desde que aquela alma indígena e bravia andava circunscrita pela minha, por causa do sangue que vinha da Vó e daquelas outras que nos pariram uma família antes Dela, da mãe e de mim.”

 

As descrições de cada planta, pedra, céu, açude, molham o cenário de secura que grita aos personagens que ser filho do sertão é pecha que não conhece as fronteiras do amor, do medo, da tragédia e que fugir para sempre das pessoas e do passado que estão dentro da gente é ilusão.

 

“O mais estava no sangue: meu coração, engenhado para durar pouco, não achou lugar no mundo onde se demorar e alcançar cidadania. Mãe, Vó, tia e eu ainda tínhamos muito o que conversar.”

Debora Consíglio

Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.

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