Happy Mondays: 30 anos “Pills’n’Thrills And Bellyaches”

 

 

 

 

Banda que não se levava a sério, para uns, falcatrua, para outros, ou, para os poucos que sobravam, criadores geniais, a Happy Mondays pode ser tudo isso ao mesmo tempo. O fato é que Pills’n Thrills and Bellyaches foi amplamente aclamado após seu lançamento em novembro de 1990, figurando como o ponto alto na trajetória dos caras. A New Music Express, uma das principais revistas de música britânica, o homenageou como álbum do ano.

 

Composto por 10 faixas, Pills (vamos ficar com o mais importante do título) foi registrado em Los Angeles e Londres e lançado pela Factory, a famosa e independente gravadora de Manchester. Era o terceiro álbum da banda formada pelos irmãos Shaun e Paul Ryder, Gary Whelan, Paul Davis e Mark Day. Não esqueçamos de Mark “Bez” Berry, figura indispensável nos shows, com suas maracas – aposto que não havia nada dentro delas, pois o barato de Bez era ficar saracoteando de um lado pro outro. Despretensão, falcatrua ou genialidade?

 

 

Madchester

 

Quando a mesma cidade dá origem a bandas tão diferentes quanto Joy Division, The Smiths e Happy Mondays, começamos a duvidar das simplificações sociológicas. A verdade é que cidades não são caixas, mas florestas arejadas. No caso de Manchester, berço da revolução industrial, uma floresta cinza. Os ventos que sopravam por lá no final do anos 1970 não eram os mesmos que chegaram na segunda metade dos anos 80.

 

Mas comecemos pelos pontos de contato. O principal deles atende pelo nome de Factory, gravadora da Joy Division e da Happy Mondays (The Smiths preferiu a londrina Rough Trade). Rob Greton ficou acompanhando a New Order, como já fazia com a Joy Division. Tony Wilson, o ancião da Factory e apresentador de um programa de TV, buscou promover uma outra banda, A Certain Radio. Essa banda tinha o problema de soar como uma espécie de sub-Joy Division, em vários sentidos. Happy Mondays mostrou-se mais promissora e Tony jogou suas fichas nela.

 

A Factory estava associada a outro empreendimento em Manchester, chamado The Haçienda. Aberto em 1982, o nightclub passou a atrair um público maior a partir de 1986. Os cinco anos seguintes foram a melhor época da Hacienda, mesmo que não desse lucro para seus donos. Na verdade, a boate vivia dos rendimentos da Factory e de seu cartel de bandas. O fracasso do quarto álbum (falcatrua!) da Happy Mondays, sucessor de Pills, foi uma das razões para a falência da empresa. Já entre os motivos do sucesso da Hacienda estavam o acid house e a cena rave.

 

Festas movidas a música eletrônica e a ecstasy, as raves começaram em danceterias como a Hacienda e no final da década ganharam as ruas. Literalmente, pois passaram a ser feitas em grandes galpões ou ao ar livre. Para escapar à repressão, os lugares eram divulgados na última hora e mesmo assim verdadeiras multidões se esbaldavam.

 

Nesse clima, 1988 e 1989 ficaram conhecidos como o “segundo verão do amor” – em referência ao que havia ocorrido em 1967. Carinhas sorridentes viraram ícones. O ecstasy estimulava a empatia e fazia até mortos dançarem. Rolou uma inesperada mistura de contracultura com hedonismo. Festas que não queriam terminar. E a angustiada Manchester se transformou na delirante Madchester. As segundas deixaram de ser melancólicas e viraram alegres. Bem diferente da elegância minimalista de um Peter Saville, a capa de Pills é uma alucinada colagem de embalagens de balas.

 

 

Negros sons

 

Acid house, na Inglaterra, foi o resultado da confluência de três vertentes de música eletrônica dos anos 80. As três eram derivações da disco music retomada por DJs negros. Larry Levan foi a referência do garage nova-iorquino. Frankie Knuckles e Ron Hardy prosseguiram com a alquimia em Chicago, gerando o house. E Derrick May esteve entre os responsáveis pelo techno de Detroit, por ele definido como um encontro entre Kraftwerk e George Clinton. As histórias desses gêneros vão além de quaisquer nomes, mas eles aparecem aqui como emblemas de processos que foram fundamentais para destacar a figura do DJ como um criador musical.

 

Esses gêneros chegam ao mesmo tempo em terras britânicas, mas ficaram mais amplos em seu apelo após terem passado pelas festas de Ibiza, no Mediterrâneo. A escala rendeu-lhes mais ingredientes – latinos e outros – no que já era uma mistura de ritmos associados à música negra. Sintetizada ao ecstasy, o acid house foi a trilha sonora obrigatória das raves, no caminho rumo ao surgimento de outras variedades da música eletrônica.

 

Pode-se dizer que o acid house foi como uma terceira onda de música negra americana a aportar na antiga metrópole. A primeira contribuiu para formar o rock’n’roll consolidado nos anos 60. A segunda revela-se no northern soul a partir do consumo de artistas da Motown e outras fontes do r&b americano. Pessoas como Shaun Ryder conviveram com os sons e os passos do northern soul, já que Manchester foi uma das referências para esse fenômeno cultural. O acid house foi o sucessor dessas ondas, possibilitando novas sínteses musicais e sociais.

 

Paul Oakenfold, que juntamente com Steve Osborne produziu Pills, tem sua trajetória fortemente atrelada ao acid house. Ele viveu em Nova York quando o garage estava sendo gestado. Já como DJ esteve nas festas de Ibiza e fez parte do grupo de pessoas que disseminaram o acid house na capital inglesa. O encontro com a Happy Mondays ocorreu em 1989 e foi fundamental para redefinir o som da banda de Manchester.

 

Shaun Ryder comenta que a banda assimilou o acid house desacelerando-o, o que reaproximou a eletrônica de outras vertentes mais tradicionais da black music. Um símbolo dessa reaproximação é a participação da jovem diva negra Rowetta Satchell nos backing vocals de Pills.

 

 

Guitarras com groove

 

A música eletrônica foi fundamental para forjar ou para redirecionar o som de várias bandas de rock britânicas na passagem entre os anos 80 e 90: além da Happy Mondays, a conterrânea Stone Roses, The Charlatans, The Inspiral Carpets, The Soup Dragons, Primal Scream, EMF e outras. A New Order incorpora, a seu modo (em Technique), o acid house à linhagem de música eletrônica que já vinha produzindo em vários álbuns ao longo da década. Mesmo a Jesus and the Mary Chain de Honey’s Dead é fortemente afetada, e o The Cure tem seu flerte no remix de “Close to Me” (aliás, pelas mãos de Oakenfold). O encontro de Oakenfold com a Happy Mondays ocorre exatamente para a produção de remixes: primeiro, uma faixa do segundo álbum lançada como single; em seguida, mais duas músicas, que pavimentaram a escolha para ele trabalhar com a banda em Pills.

 

Pills, no entanto, está longe de ser um álbum de acid house. Suas faixas não são bate-estaca. Todas as músicas contêm letras, mesmo se elas não dizem coisas lá muito elaboradas sobre sexo, drogas, festas e empregos sem futuro. Sobretudo, é um álbum com muita guitarra, coisa bastante incomum no acid house. Vale notar que Pills é o terceiro álbum de uma banda que começou em 1980 referida ao rock – e assim continuou. O segundo álbum, Bummed, com a contribuição de Martin Hannett, já havia recebido certo reconhecimento. Para o terceiro, o acid house, pelas mãos habilidosas dos produtores, é fundamental, mas sua presença está mais nos detalhes e na sonoridade geral. Nos ingredientes principais, Pills é o resultado do trabalho de uma banda de rock e de seus instrumentos.

 

Vou repetir: a guitarra é um destaque em Pills, inclusive na mixagem da maior parte das músicas. Em riffs, pegadas ou bases, ela está quase sempre lá. A percussão é feita essencialmente com bateria, em levadas eventualmente quebradas, mas sempre repetitivas, às vezes acompanhada de tambores. O baixo de Paul é daqueles bem graves, em contraste com a voz desencorpada e arrastada de Shaun. Em algumas faixas, escutamos a voz de Rowetta, esta bem encorpada. Teclados e outros instrumentos eletrônicos marcam presença, mas sem dominar a cena.

 

Os destaques de Pills vão para as faixas com alto coeficiente de pista, a maioria delas anabolizadas em versões remixadas que aprofundariam as pegadas eletrônicas. “Kinky Afro”, a faixa de abertura, foi feita sob a inspiração de Hot Chocolate e na frase cantada por Rowetta remete a “Lady Marmalade” de LaBelle’s. “Dennis and Lois”, no começo do lado B do vinil, faz você olhar para o céu no refrão. “Bob’s Yer Uncle”, safada desde a letra, tem uma levada feita com violão e tambores. “Loose Fit” também dá para dançar, se você ficar tão largado quanto o estilo das roupas que ficaram associadas com a banda. O mesmo vale para “Donovan”, que depois da metade ganha outro ritmo com uma guitarra metálica e contagiante.

 

O super destaque vai mesmo para “Step On”, que foi lançada, assim como “Kinky Afro”, como um single antes de Pills. A história de “Step On” é interessante, pois se trata de cover de um rock do sul-africano John Kongos, lançado originalmente em 1971. A princípio, a faixa iria para o álbum Rubáiyát, uma coletânea de covers de artistas do cast da gravadora Elektra. Mas a Happy Mondays fez a versão de outra música de Kongos e, espertamente, guardou “Step On” para um single, depois incluído em Pills. O riff da guitarra original é mantido e inserido em uma batida sacolejante em diálogo com um teclado jazzístico. O tratamento conferido à bateria de Gary Whelan resulta em um groove matador, especialmente na parte em que Rowetta faz seu solo. Na saída do refrão, a guitarra é realçada por sua microfonia. Microfonia e groove? Genial!

 

As demais faixas de Pills não deixam o nível cair, mesmo não tendo apelo igual ao das já comentadas para uma pista de dança. “God’s Cop” tira sarro do chefe da polícia local que dizia ter uma linha direta com Deus. A guitarra de Mark Day brilha em “Grandbag’s Funeral” dialogando com o teclado de Paul Davis. “Holiday” (que sampleia um trecho de Change, outra referência da black music) também é dominada pelo riff de guitarra e encosta nas faixas mais dançantes. Ela engata sem deixar espaço com a faixa de encerramento, a arrastadona “Harmony”, pura (e despretensiosa!) viagem.

 

 

Tristes trópicos

 

Em janeiro de 1991, a Happy Mondays esteve no palco do segundo Rock in Rio. O convite chegou de última hora e a apresentação foi tumultuada pelo extravio de parte da bagagem da banda – ocasionando uma mudança de data – e por uma reportagem que destacou o apreço do vocalista pelo ecstasy – ele teria prometido trazer ao Brasil uma carga generosa de pílulas. Do show, teve gente que gostou, teve gente que não gostou. A banda era conhecida apenas pelo videoclipe de “Step On” que rodava na MTV, o álbum mesmo só seria lançado alguns meses depois.

 

Outro ponto que talvez tenha prejudicado a recepção da Happy Mondays no Brasil é que não havia algo correspondente ao “verão do amor” rolando por aqui. Musicalmente, as guitar bands do início dos anos 90 tinham outras referências, menos preocupadas com as pistas. Se a proposta era dançar, 1990 oferecia o primeiro disco solo de Fernanda Abreu, em boa parte inspirado nas mesmas fontes da disco music de onde tinha saído o acid house. Com certo esforço, uma conexão se estabeleceria entre a cena britânica e as viagens literárias e sonoras de Fausto Fawcett (que aliás participa do álbum de Fernanda) – mas isso fica para outro texto.

 

É estranho estar comentando, agora que sofremos com a pandemia, um álbum cuja gestação dependeu fortemente de festas que juntavam milhares de pessoas. Enquanto tivermos que manter o distanciamento social, abramos um espaço na sala e, celebrando a alegria que nos falta, dancemos ao som dos despretensiosos, falcatruas e geniais Happy Mondays em seu Pills’n Thrills and Bellyaches.

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

One thought on “Happy Mondays: 30 anos “Pills’n’Thrills And Bellyaches”

  • 28 de agosto de 2020 em 19:22
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    Que legal. .Muito Foda. .Vida Longa. .ZECA St kkkk

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