Glenn Greenwald, Jorge Jesus e a guitarra elétrica
Ontem o jornalista e advogado americano Glenn Greenwald esteve no centro do cenário do programa Roda Viva. Ao seu redor, como é de costume, uma bancada de especialistas em algum assunto, perguntavam a ele sobre as ações de seu site, The Intercept Brasil, referentes aos vazamentos de conversas e arquivos supostamente hackeados de celulares do atual Ministro da Justiça, Sergio Moro e de procuradores envolvidos na força-tarefa da Operação Lava-Jato, entre eles, Deltan Dallagnol. Não é preciso lembrar o episódio dos vazamentos – que fez a série de reportagens de Glenn ser apelidada de “Vaza-Jato”, nem a atuação dos integrantes do Poder Judiciário na investigação de denúncias de corrupção entre parlamentares e o ex-Presidente Lula, preso por conta do processo do apartamento triplex do Guarujá, atribuído a ele, com base na convicção dos envolvidos no julgamento.
Greenwald também é advogado e um conhecido ativista dos direitos humanos e da liberdade de imprensa. Em 2013, recebeu de Edward Snowden, ex-funcionário da NSA – agência de segurança nacional americana – um volumoso arquivo de dados e informações sobre ações suspeitas e/ou ilegais do governo americano em relação ao resto do mundo, especialmente no âmbito econômico e político, mais especificamente, dizendo respeito à soberania de outros países e cidadãos estrangeiros. O cineasta Oliver Stone filmou um longa a respeito, intitulado “Snowden” e Glenn, casado com o deputado federal David Miranda, e residente no Brasil, sofreu pressões de todos os tipos, visando a não publicação das informações. Mas ele as publicou.
Voltando ao Roda Viva. Independente do âmbito político – concessão que faço apenas para questões de praxe e neutralidade deste texto – Glenn precisou gastar seu português carregado de sotaque. Sabatinado por cinco jornalistas brasileiros, alguns de grandes veículos de comunicação, ele precisou explicar detalhes das publicações feitas por seu site. Nelas estão expostas várias situações em que os procuradores e Sérgio Moro agiram sem qualquer ética profissional, passando da condição de agentes do estado brasileiro para parte interessada nos processos que julgaram. Mas não é este o âmbito do texto. Greenwald precisou, repito, explicar aos seus “colegas” detalhes sobre sigilo de fontes, isenção ideológica, senso de justiça e, em momentos que beiraram o inacreditável, diferenciar a atuação de um jornalista da de um hacker, após ser questionado qual o valor do profissional diante da eficiência/contundência de um pirata cibernético. E a pergunta foi feita por uma jornalista, Lilian Tahan, do Portal Metrópole.
Ficou evidente a diferença entre o jornalista Glenn e os outros profissionais presentes. Oriundo de um país com ação internacional questionável, não dá pra deixar de enaltecer uma característica essencial dos Estados Unidos: a garantia da liberdade de imprensa. Lá é possível expressar opiniões políticas sem medo de qualquer retaliação, como, por exemplo, a demissão por opinião política-partidária. Se você é “de esquerda” ou “de direita” por lá, pode ficar em paz. Aqui, pelo contrário, os jornalistas – e seus veículos – fazem papel de fiadores deste ou daquele ponto de vista político e não medem esforços em desqualificar, destruir, coagir e, sob o manto da isenção suposta, mentir. Enquanto Glenn Greenwald explicava aos outros a diferença constitucional entre ser jornalista e hacker, me lembrei do Brasil marchando contra a guitarra elétrica. E de Jorge Jesus, atual técnico do Flamengo.
Em ambos os casos – e no caso de Glenn – o Brasil surge como uma terra absolutamente atrasada. Estamos muito, muito atrás do resto. Não é possível que alguém precise ir até um programa de TV para explicar o benefício de dispor da liberdade de expressão. Da liberdade de imprensa. De poder oferecer uma visão não-oficial dos fatos. É triste e irritante, além de nos deixar envergonhados. O Brasil sempre teve problemas com a modernidade, que só pareceu chegar aqui por conta de iniciativas isoladas/abnegadas, sempre no âmbito pessoal/micro. Quando pensamos que o país vai se inserir no contexto mundial, caímos do cavalo.
Em 1968 havia artistas preocupados com o horror que a guitarra elétrica poderia causar à pura música brasileira. Como se fôssemos um pedaço de dimensão continental flutuando no espaço, livre da influência do resto do mundo. A guitarra significava a juventude, a contestação. Seu uso nas músicas, nos arranjos, era evidente sinal de que era possível acompanhar as tendências vindas de fora, porém, com a preocupação de torná-las nossas, não simplesmente imitá-las. Assim nasceu o conceito básico da Tropicália, a ideia de antropofagia/regurgitação das ideias gringas, gerando algo genuinamente brasileiro. Antes dela, a Semana de 1922 já falava da mesma coisa: de pegar ideias e conceitos da Bella Époque francesa e criar algo nacional. Foi preciso tempo para a história defender o valor destes momentos da vida cultural nacional.
Com Jorge Jesus, 68 anos, acontece algo parecido. Com ele, não, com o futebol. O esporte que era nosso, que nos deu cinco Copas do Mundo, parece uma sucessão de efeitos especiais, se compararmos o que é jogado em campeonatos como o inglês e o espanhol, com a mísera bola que temos por aqui, no Brasileirão. Times retrancados, presos à lógica neoliberal de serem apenas fornecedores de divisas para o futebol internacional, jogadores de qualidade baixíssima, esquemas táticos covardes e treinadores acomodados como se fôssemos uma grande dobra espaço-tempo, onde nada acontecesse desde, sei lá, 1985.
Jesus, ex-técnico do Benfica e do Sporting, clubes portugueses relativamente coadjuvantes no cenário europeu/mundial, chegou ao Flamengo há pouco mais de dois meses. Implantou a filosofia de jogo na qual o time joga para frente, visando a vitória, sempre. Parece incrível, mas isso é revolucionário por aqui. Ao contrário de segurar a bola, tumultuar as ações e, no jargão desportivo, “achar” um gol, o Flamengo agora joga como … nos anos 1980, década de maior glória do time. É o líder do campeonato, ao lado do Santos – outro time treinado por um estrangeiro, Jorge Sampaoli – e exibe um futebol que enche a vista até mesmo dos adversários. Como resultado, o Flamengo chegou à semifinal da Copa Libertadores da América após 35 anos e vai disputá-la com o Grêmio, curiosamente, o time mais bem treinado do país, conhecido por … jogar para frente.
O português então, é mágico? Glenn Greenwald é mágico? A guitarra elétrica era mágica em 1968? Não. Nos é que estamos loucamente defasados. Não temos parâmetros de uma classe média comprometida com o aspecto nacional para que comande um movimento de melhoria da educação nacional, através da eleição de políticos comprometidos com a causa. Ao contrário, acham que a educação é perigosa porque esclarece as pessoas. E, claro, eu completo: as torna conscientes do nosso atraso, da nossa pobreza – material e de espírito – e da nossa mediocridade. O que nos dá mais tristeza é ver o potencial do Brasil, um lugar rico, enorme, de povo amistoso e bom. Quem pensa que o brasileiro é preguiçoso – como sempre ouvimos de gente da … classe média – precisa passar nos pontos de ônibus antes do sol nascer para ver a quantidade de gente que lá está. Andar nos trens, nas barcas.
O que nos deixa aleijados é a falta de educação, de cultura, de levar a sério o nosso país. De empreender iniciativas isoladas, que não querem dizer, necessariamente, dinheiro e fama, mas que vão ressoar em outras pessoas, em algo, em algum lugar. Do contrário, veremos Greenwald, Jesus e a guitarra elétrica como aliens. Precisamos aprender. Logo. Do contrário, a profecia de Cazuza continuará se cumprindo, a de sermos aquele museu de velhas novidades.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.