Folk, gospel e reflexão no novo Ray Lamontagne

 

 

 

 

 

Ray Lamontagne – Long Way Home
32′, 9 faixas
(Thirty Tigers)

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

 

 

 

Ray Lamontagne é um desses artistas quase totalmente desconhecidos no Brasil e isso é uma grande pena. Ele surgiu no início dos anos 2000, fazendo música calcada no folk setentista e na tradição trovadora americana, sempre com ótimo gosto para arranjos, vocais e melodias. Com o tempo, Ray visitou estilos diferentes, chegando mesmo a enveredar pela psicodelia e até pelo progressivo, mas sempre deixou transparecer que o folk e o sentimento de pertencimento a uma comunidade menor, uma cidadezinha, algo assim, seria uma espécie de farol de sua musicalidade. Não espanta, o sujeito nasceu em Nashua, estado americano de New Hampshire, uma … cidadezinha e essa sensação é um dos trunfos de sua obra, algo que é especialmente legal em tempos tão amplos e abrangentes como os nossos. Ao longo da carreira, Ray, em sua visita por outros tons e estilos desse grande mapa da música americana do século 20, incorporou uma versão peculiar do gospel e, por conseguinte, da soul music. Vocalizações, arranjos, temas e abordagens desses cânones deixaram sua música mais afetuosa, melhorando ainda mais o mecanismo de identificação e belezura. Este belo “Long Way Home”, seu nono álbum, é o mais novo capítulo dessa trajetória.

 

A gente entende que um disco é bom quando uma das maiores reclamações sobre ele é sua curta duração. Com nove faixas e pouco mais de meia hora, dá pra querer muito mais canções com este clima de “feelgood” que Ray imprime nos arranjos. Sua voz deve muito a mestres incontestáveis, aliando a força de Van Morrison com a imprevisibilidade de Neil Young e os arranjos trazem elementos como metais, steel guitar, vocais de apoio nas melhores tradições soul-country possível hoje e tudo contribui para uma audição tranquila e contemplativa. O bacana deste novo álbum é que Ray, que completou 51 anos há dois meses, sentiu necessidade de refletir um pouco sobre o que é estar a meio caminho na grande estrada da vida e ter a sensação de que está mais perto da linha de chegada do que da largada. Parece simples, parece clichê, mas esta sensação é mola mestra de várias obras de arte em diferentes campos estéticos, justo por sua inevitabilidade e por trazer a paradoxal sensação de que, mesmo mais perto do fim, não queremos abrir mão das experiências adquiridas ao longo do caminho. E, mais que o início ou o final, ele, o caminho, é o grande motivo de tudo.

 

Ray tem essa noção e suas nove canções aqui parecem saudar a trajetória, a jornada, a capacidade de reconhecer-se em movimento e ir adiante, com espaço para positividade e pé no chão, afinal de contas, ao contrário do que te dizem, nem tudo está tão mal assim. É também um álbum em que ajuda bastante acompanhar as canções lendo suas letras – todas de autoria dele – e ouvir o que Ray tem a dizer. Já na primeira canção, “Step Into Your Power”, dentro de uma estrutura de arranjo que evoca o gospel tradicional, ele diz que todos temos força e competência para seguirmos firmes, que, como o título diz, precisamos “conhecer o nosso próprio poder” e dá conselhos como “não tenha medo de cair, de falhar, pois isso irá dar forças mais à frente”. Mas, a meu ver, o conselho mais poderoso e emancipatório é: “tudo o que você precisa, você já tem desde o dia que nasceu”. O country mais estilizado e moderno é lembrado na canção seguinte, a bela “I Wouldn’t Change A Thing”, que abraça acertos e erros da vida com igual força, lembrando que as imperfeições, além de nos dar casca e força, nos tornam únicos e nos definem tanto quanto os êxitos, dando um cacete na cultura coaching vigente no senso comum emburrecido.

 

Ao longo das canções, Ray vai visitando sua família (ele é casado e tem dois filhos pequenos) em “Yearning”, que tem um belo tom folk campestre; exercita o seu Neil Young pessoal na sintomática “And They Called Her California”; entrecruza influências de Sam Cooke e Van Morrison na melhor canção do álbum, “My Lady Fair”, cujo arranjo evoca órgão e andamento em que r&b, soul e folk coexistem em harmonia. Na letra ele canta o amor pela mulher amada e por tudo de bom que este sentimento pode trazer para sua vida. O folk mais contemplativo volta em “The Way Things Are”, canção em que ele critica o vai e vem da fama fácil e como isso pode iludir aqueles que não tiverem a atenção suficiente. Há dois números instrumentais no álbum, “So, Damned Blue” e “La De Dum, La De Da”, que ajudam a compor o meio de campo e pavimentam o caminho para que Ray evoque imagens do passado, de outras casas, outras pessoas, na pungente “Long Way Home”.

 

Tudo aqui é belo, bem feito, extremamente pessoal e cheio de sentimento. É aquilo que costumamos chamar de pequeno grande disco, um trabalho que não inventa a roda, não encherá estádios, mas fornecerá minutos preciosos para refletir, contemplar ou, simplesmente, diminuir a rapidez do cotidiano. Ouça e mergulhe.

 

Ouça primeiro: “Long Way Home”, “My Lady Fair”, “Step Into Your Power”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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