Finalmente o discaço da Kim Deal

 

 

 

 

Kim Deal – Nobody Loves You More
36′, 11 faixas
(4AD)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

Antes de começar a falar sobre a lindeza que é “Nobody Loves You More”, convém explicar que este não é o primeiro disco solo de Kim Deal. Os mais dedicados admiradores da cantora, baixista e ícone alternativo de Dayton, Ohio, hão de se lembrar de uma pequena pepita chamada “Pacer”, assinado por uma tal de The Amps. Era a própria Kim tocando, cantando, compondo e fazendo tudo, usando um pseudônimo, como se fosse uma banda. Em doze faixas e pouco mais de meia hora, ela exorcizava demônios, fazia reflexões e olhava para o futuro, logo ela, que, se olhasse para trás, veria sua participação decisiva na existência dos Pixies e das Breeders, as bandas das quais fez parte indissociável. Não é pouco, convenhamos. Sendo assim, aqui estamos diante do primeiro álbum que Kim assina como artista solo, um movimento simbólico e que lhe dá espaço para apresentar um trabalho que soa como uma evolução plausível e lógica do que sempre fez. Se o lado roqueiro, mais abrasivo dos anos 1990 estão discretos, a emoção e a sinceridade são totais e conectam o ouvinte diretamente ao que Kim quer dizer. É como se ela nos convidasse para um papo no qual irá nos contar sobre como sua vida tem sido até aqui.

 

Sinceridade é sempre uma moeda poderosa na música pop. E cada vez mais rara em tempos algorítmicos, mercadológicos, pós-industriais. Kim pode se dar ao luxo de abrir mão dessa lógica – que ela nunca abraçou, diga-se – para se conectar com novos e velhos admiradores. Digo “novos” porque ela participou da reunião dos Pixies e permaneceu na banda até 2013. Ao mesmo tempo, lançou disco com as Breeders em 2002 (“Title Tk”), 2008 (“Mountain Battles”) e 2018 (“All Nerve”). Mas o que realmente apresentou Kim para uma novíssima audiência foi o convite que Olivia Rodrigo fez às Breeders para que fizessem o show de abertura de sua “Guts Tour”. Ao todo foram oito apresentações, quatro no pontapé inicial, em quatro noites do Madison Square Garden, em Nova York e no encerramento, em Los Angeles. Rodrigo falou aos fãs sobre o impacto que “Cannonball”, hit do segundo álbum das Breeders, “Last Splash”, de 1993, teve em sua vida e formação pessoal e musical, o que estabelece uma conexão direta entre o pop punk-grunge que faz hoje e o rock alternativo americano de guitarras, dos anos 1990, o elemento essencial e natural de Kim.

 

Sendo assim, o interesse por este trabalho solo é renovado e grande. Como ela mesma disse em várias entrevistas, sua vida se transformou a partir de 2002, quando sua mãe foi diagnosticada com Mal de Alzheimer, permanecendo dezoito anos com a doença, o que motivou a volta de Kim para a casa dos pais, para participar de uma estrutura de cuidados e carinhos. Neste espaço de tempo, mesmo engajada com os projetos pessoais e das bandas, ela esteve absorvendo experiências novas e duras, que resultaram num processo criativo que durou anos. Há canções em “Nobody Loves You More” que foram compostas há mais de dez anos. Para traduzir essa carga emocional e artística, foi essencial a presença do produtor Steve Albini, que soube dar forma ao material que Kim trouxe. Ambos atravessaram a pandemia da covid-19 aparando arestas, escolhendo repertório e iniciando os trabalhos remotamente. Quando a situação melhorou, o trabalho foi intenso e o resultado é marcante. A morte de Albini no ano passado só faz o resultado ser ainda mais emocionante e pungente.

 

“Are You Mine?” e “Wish I Was” são de 2011 e foram registradas anteriormente pela própria Deal. A primeira é uma devastadora crônica sobre a perda da memória de sua mãe diante da doença, a ponto de não reconhecer mais as pessoas com quem sempre viveu e a quem sempre amou. O álbum conta com muitas participações, entre elas, Mando Lopez, Kelley Deal, Jim Macpherson e Britt Walford (atuais e ex-integrantes das Breeders), Raymond McGinley (Teenage Fanclub) e Jack Lawrence (Raconteurs), entre outros. A faixa-título tem um andamento lento que confunde a mente: ao mesmo tempo que traz a voz reconhecível de Kim, exibe um arranjo com um andamento mais lento, cordas e um jeitão de canção dos anos 1960. “Coast” também tem elementos pop tradicionais dos anos 1960/70 e se vale deles para contar a história de uma banda de casamento em um mau dia, enquanto “Disobedience” traz palavras que questionam a validade de concordar com leis e pessoas que não têm ética. E “Summerland”, outra que parece contrabandeada do túnel do tempo, é uma canção à beira-mar, falando sobre as idas com os pais para Florida Keys, num esforço familiar para dar o máximo possível de alegria e conforto para eles.

 

“Nobody Loves You More” é adorável. Depois de tanto tempo, não poderíamos esperar nada diferente de uma artista superlativa como Kim Deal. Uma lindeza.

 

 

Ouça primeiro: “Nobody Loves You More”, “Coast”, “Disobedience”, “Summerland”, “Are You Mine?”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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