A Alteridade, a Música e a Fronteira contra a Burrice
Alex E.Chávez – Sonorous Present
46′, 13 faixas
(Artist Entertainment)
O próximo presidente americano, donald trump, disputando seu segundo mandato, defendeu em sua campanha a deportação de milhões de imigrantes – legais e ilegais – atualmente vivendo no país. Ainda que analistas econômicos avisem sobre um eventual colapso da economia americana a partir da execução – também eventual – desta medida, o mandatário recém-eleito, mantém-se firme. Se pensarmos na vida para além da economia e da política, um exercício que precisamos aplicar em nós mesmos constantemente, veremos que a imigração, seja ela qual for, de onde venha e para onde vá, significa contato entre culturas, tradições e vivências, que irão se transformar, ressignificar e criar novas e novíssimas manifestações humanas em vários planos. Sabemos que isso é motivo de medo e preconceito por parte de conservadores e retrógrados, mas, via de regra, é um processo inevitável e que culminará na percepção de que somos uma só espécie, vivendo num só planeta, literalmente iguais. De alguma forma, o professor e músico Alex E.Chávez, consegue dizer isso e muito mais em seu álbum de estreia, “Sonorous Present”, composto, tocado e gravado por ele, com a colaboração preciosa de vários convidados, que o ajudaram a criar um dos mais belos e emocionantes painéis sonoros sobre as tradições e interações de latinos nos Estados Unidos. Tudo aqui é muito bonito e emocionante.
Chávez é descendente de mexicanos e vive em Chicago. Sua atuação é na área acadêmica e ele já publicou um livro sobre este assunto, “Sounds of Crossing: Music, Migration, and the Aural Poetics of Huapango Arribeño”, falando sobre o fluxo migratório e o mito da “frontera”, que seria “o outro lado”, a divisória entre os Estados Unidos e o México e tudo que vem abaixo. A própria civilização estadunidense tem a “conquista da fronteira” como um de seus pilares de formação. Foi o que fez as iniciais Treze Colônias inglesas se expandirem para o oeste, impondo seu modelo de vida e economia, varrendo do caminho quem dera a falta de sorte de ali estar – mexicanos, negros, índios. Com o avanço do tempo e o progresso tecnológico e social do novo país, os povos adjacentes para lá se dirigiram em busca de alguma prosperidade. Este processo, que vem se arrastando desde o fim do século 19, trouxe as mudanças a que nos referimos acima. Toda uma nova cultura emergiu em várias regiões dos Estados Unidos, criada por interações entre portorriquenhos, mexicanos, cubanos e outros povos latinos e seus descendentes. “Sonorous Present” fala com todos eles.
Além da carreira acadêmica, Alex E. Chávez participa de uma banda em Chicago, a Dos Santos, que já contabiliza quatro álbuns lançados. A sonoridade que ele oferece neste álbum, no entanto, é bem diferente. A partir de arranjos que misturam o violão acústico com delicadas intervenções de teclados, baixo, percussões e samples, Chávez constroi um painel próximo do surrealismo, fazendo as canções flutuarem no ar, ao mesmo tempo em que fala de sonhos, sofrimentos, idas, vindas e tragédias pessoais, incluindo a dele, que perdeu pai, mãe e irmã num espaço de tempo bem curto. É como se fosse um filme de Alfonso Cuarón em forma de música, só que mais delicado, quase impossível. No meio do caminho, há espaço para versos recitados, participações gloriosas de cantoras que surgem como aparições de um tempo que passou mas que não se foi, algo muito belo que deve emocionar ainda mais profundamente alguém com a noção exata dos sentidos e significados da “frontera” e de tudo o que significa estar de um lado e do outro e como a vida se transforma diante dos olhos.
É praticamente impossível destacar uma ou outra canção nesta obra que mais parece uma suíte, mas, de cara, o ouvinte já leva um choque com “Luz”, que abre o disco e, em pouco mais de dois minutos, te envolve com uma sensação de paz e beleza invencíveis. A partir daí se abre um percurso lírico, lindo, que parece à parte do mundo e de sua crueza. Em “Communiqué”, os versos em inglês, declamados por Roger Reeves, revestem com mais uma camada de sonho o andamento triste da canção, que, entre ruídos de crianças ao longe, passarinhos e ecos distorcidos, cria esta paisagem de sonho. Em “Guadalupe” o ritmo acelera e a participação impressionante de Laura Cambrón coloca tudo em um outro plano. “Catalina” também vai por este caminho da beleza impossível, dessa vez com participação preciosa dos vocais de Lucía Rebolloso. Em “Cómplices de Luto”, a percussão dá profundidade à narrativa – tristíssima – de perda e reinvenção a partir das ausências, enquanto um baixo distorcido surge do nada e adorna “Dirty Hands” com um tom estranho, complementado por sintetizadores. “Malagueña” mistura passado e presente com arranjo que evoca várias imagens e lembranças que nem tivemos, mas que estão lá, em algum lugar. A trinca final de canções é de fazer estátua se emocionar: “Refugios”, que tem algo de melodia doo-wop noturna em seu arranjo; “Cuerpo Presente”, que ecoa bendições e deságua num mar de sintetizadores e pianos, numa cascata de lindeza em meio a outra participação de Roger Reeves recitando versos, abrindo caminho para o final, com “The Shadow”.
“Sonorous Present” é uma obra prima das pequenas sensações, que cabem em grandes questões. É evocação de passado, de presente, de gente que vai, vem, volta, se transforma mas nunca deixa de ser quem é. É alteridade dentro do campo de visão, é pluralidade contra a burrice uniformizante. É um disco lindo, lindo, imperdível.
Ouça primeiro: tudo, na ordem determinada, em silêncio, concentrando-se ao máximo.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.