Eu era um humanista

 

 

Nas cenas finais do ótimo filme “Contato”,  a personagem de Jodie Foster tem o que parece ser – e é, mas o filme dá uma aura misteriosa ao fato – um contato com uma inteligência extraterrestre. Em algum ponto do breve diálogo, o alienígena fala pra ela:

 

 

–  Vocês são uma espécie muito peculiar…uma mistura interessante. São capazes dos sonhos mais lindos e dos pesadelos mais terríveis…

 

 

“Contato” foi escrito por Carl Sagan em 1979, como um roteiro, com a ideia de tornar um filme – o que só aconteceria em 1997. Como as tratativas emperraram logo após a conclusão do texto, Sagan decidiu lançá-lo como livro, o que aconteceu em 1985. Escrito numa época em que os Estados Unidos experimentavam o fim do período Jimmy Carter, marcado por certo apreço à paz, materializado em vários acordos firmados entre países beligerantes e pela atuação dos Estados Unidos numa política de coexistência pacífica em relação à União Soviética, “Contato” tem uma mensagem de união e desenvolvimento baseada na obstinação do ser humano e por seu desejo de evoluir como espécie, num nível pessoal e social. A primeira regra para amar uma obra de ficção científica é entender que ela espelha o tempo em que é feita. Por isso a ênfase na figura da personagem de Foster, a astrônoma Ellie Arroway, cética, fria, cientista, mas que vai se confrontar com esta experiência do contato alienígena com pouquíssimas provas para confirmar sua verdade. No fim das contas, Ellie acaba aprendendo, tornando-se uma pessoa melhor.

 

 

Corta para o Brasil de 2021. O  Brasil da pandemia e do pandemônio. Está difícil e exaustivo acreditar no ser humano, mesmo sob o ponto de vista do nosso amigo ET do parágrafo acima. Parece que somos a espécie apenas dos pesadelos mais terríveis e eles se materializaram diante dos nossos olhos ainda perplexos. A discussão entre a vacinação e a covid-19 tornou-se política por conta da atuação do ocupante da presidência e de suas constantes aparições desmerecendo a letalidade da doença. Enquanto isso, seu “governo” atua para dificultar a vacinação da população, emperrando negociações e deixando nas mãos dos governadores e prefeitos a tarefa para imunizar as pessoas. Sua conduta, como sempre, não tem qualquer apreço pelo semelhante, pelo mais fraco ou pelo vulnerável. Sua fala cobrando atitude e questionando o “mimimi” de mais de 260 mil famílias que perderam pessoas para a doença em menos de um ano, é a confirmação dessa falta de carinho, de caráter, de empatia. De noção. De humanismo.

 

 

Mas disso a gente já sabia, certo? Quando este sujeito venceu as eleições, ele já falava coisas semelhantes há muito tempo. Disse, por exemplo, que a ditadura civil-militar brasileira deveria ter matado umas 30 mil pessoas, ou seja, é uma pessoa que lida com a morte sob uma perspectiva prática, mecânica. Para ele, é apenas uma contingência a sua ocorrência em larga escala, algo que é bastante sério num governante que se supõe viável numa democracia.

 

 

Essa postura e esta conduta do ocupante da presidência já era espelhada por seus apoiadores e a relação dele com a doença gerou uma multidão de reprodutores deste discurso de menosprezo à covid-19 e, por tabela, ao próximo. A ponto de podermos definir o posicionamento político, ético e humano das pessoas por conta de sua opinião sobre a necessidade de se vacinar. E não estamos falando de uma vacina contra algo que ataca poucas pessoas, grupos isolados e que, em última instância, não é letal. Estamos falando de uma pandemia, de uma moléstia que mata em pouco tempo e não escolhe idade, grupo social,  gênero ou etnia. Repito: são mais de 260 mil mortos, com números diários que estão em quase 2 mil mortes.

 

 

Por isso, peço que deem uma olhada no vídeo abaixo, pinçado do Twitter. Nele a atriz Ângela Dippe está na Avenida Paulista, filmando uma pequena multidão de pessoas – vestidas com roupas de apoio ao ocupante da presidência – sem qualquer proteção contra o contágio da doença. A partir do momento em que ela é notada, a pequena multidão passa a ofendê-la, justo porque está com máscara facial. Ela é chamada de “covarde”, “escrava do joão dória”, escrava do comunismo”, “massa de manobra”, justo porque acredita na letalidade da covid-19, porque tem conhecimento disso e porque deseja se proteger e ao próximo.

 

Ver este vídeo, como ver tantos outros gravados nos últimos anos no Brasil nos dá a certeza de que é quase impossível ser humanista por aqui. Lembrando que, por humanismo, a gente entende uma doutrina filosófica renascentista, na qual a fé nos valores humanos era a principal característica. Era uma recuperação de pensamentos greco-romanos, que tinham a ver com ética, amor ao próximo e várias outras instâncias, que respingaram nas artes e na política. Leonardo Da Vinci, por exemplo, era um humanista.

 

 

Imaginem Da Vinci na Avenida Paulista, usando máscara facial e sendo chamado de massa de manobra do comunismo.

 

Imaginem.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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