Enfim um disco de soul que não é vintage
Ledisi – Good Life
49′, 13 faixas
(BMG)
Já faz bastante tempo que soul music tornou-se sinônimo de som vintage. Aquelas gravações que buscam emular sonoridades do início dos anos 1960, especialmente da gravadora Stax dão as cartas e, mesmo que isso não seja exatamente um problema, a impressão que temos é que o estilo estagnou-se totalmente. Daí, alguém pode dizer, existe o r&b alternativo, que cresce forte em trabalhos de gente com SZA e similares. É bacana, claro, até porque há muita gente interessante fazendo música eletrônica com este viés, mas, sinceramente, sentimos falta de algo mais pop, menos experimental, porém, totalmente sintonizado com o presente. Quem entrega isso, pacote completo, adicionando charme, ótimos vocais e um extremo bom gosto na hora de elaborar arranjos, escolher colaboradores enquanto esbanja talento é a cantora americana Ledisi. Natural de Nova Orleans, ela e a família se mudaram para Oakland, onde cresceu e participou de vários projetos como atriz e integrante de bandas, que lhe renderiam projeção suficiente para assinar como artista solo ainda bastante jovem. Desde então – início dos anos 2000 – Ledisi é força criativa no ramo e está com um novo disco, seu décimo: “Good Life”.
Dona de uma voz privilegiada, Ledisi tem bom senso, o que é imprescindível quando se mexe com soul music. Ao contrário do rock e do pop, soul é algo reverente, necessita de uma certa postura, um certo clima. É música de exaltação e precisa, sobretudo, de um canto potente para ultrapassar a atmosfera do cotidiano e atingir os sentimentos de quem ouve. Não basta cantar algo, ter técnica, é preciso entender o que se canta e … cantar. O grande trunfo dela é ter inspiração que não se restringe ao óbvio, valorizando também gente que não é totalmente do ramo, mas que deu valiosas contribuições, caso, por exemplo, de Nina Simone. Além dela, Ledisi tem muito de Gladys Knight e Dionne Warwick, especialmente porque entende que deve haver nuances e sutilezas no canto, não apenas um concurso vocal. O que este belo “Good Life” oferece é a oportunidade do ouvinte se deparar com um verdadeiro desfile de habilidade por parte da moça, com interpretações que variam bastante de uma faixa para a outra, sem, repito, se valer de emulações de cinco décadas para soar relevante.
Se a gente especificar o tipo de soul music que Ledisi faz, encontraremos o termo “quiet storm”, uma forma específica de sonoridade romântica, com arranjos luxuriantes de cordas e andamento sexy, forjado por ninguém menos que Smokey Robinson em seu disco homônimo de 1976, que tem na faixa-título o maior expoente deste tipo de canção. É um estilo que tem em Luther Vandross e em D’Angelo dois expoentes, sendo o segundo uma grande referência para artistas em atividade hoje. Com a colaboração do parceiro Rex Rideout, que produz a maioria das faixas, e com participação e parceria com Marsha Ambrosius, Tish Hyman, Isaiah Sharkey, Burniss Travis e Cory Henry, o álbum ganha ares de celebração e classe. Não há momento desperdiçado.
Duas canções saltam aos ouvidos. O single “I Need To Know”, que é arrasador em seus detalhes e nuances, com um arranjo intrincado de vocais e um instrumental belíssimo, coisa muito fina. “Sell Me No Dreams” também vai pelo mesmo caminho, ainda que tenha uma malemolência maior, lembrando um pouco os melhores momentos do Destiny’s Child, por exemplo. “Perfect Stranger”, com participação de Kenny Lattimore, é outra lindeza de canção, mais fluida e com pinta de sucesso de FM repaginado para os tempos atuais, enquanto “Quality Time”, colaboração com Butcher Brown, também mergulha em referências do soul noventista para passear pelos caminhos do soul’n’sexy. Aliás, há muito não se ouve um disco tão romântico e sensual, dentro da variante lasciva e elegante do soul. Ledisi dá conta do recado alternando nuances, como, por exemplo, na faixa-título, quando escapa do romance para agradecer pelas boas vibrações de amigos e namorados, ou no encerramento, com “Hello Love”, quando saúda os vai-e-vens do tempo, do sentimento e do coração dentro de um groove mágico. Tudo funciona por aqui.
“Good Life” é um discaço. Cheio de referências e bom gosto, ele tem tudo para fazer delícia nos ouvidos dos aficcionados. Baixe o som, baby. Vamos nessa.
Ouça primeiro: “Hello Love”, “I Need To Know”, “Sell Me No Dreams”, “Quality Time”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.