Nine Inch Nails em 1994: preciosas porcarias

 

 

 

Foi longo o caminho durante o qual se criou The Downward Spiral, lançado em março de 1994. Nele há uma conexão com Pretty Hate Machine (1989), o álbum de estreia da Nine Inch Nails (NIN), o nome coletivo assumido pelo seu cérebro e quase corpo inteiro, Trent Reznor. Uma espécie de rato de estúdio, Reznor pariu praticamente tudo.

Nos shows, entretanto, cercou-se de músicos que iriam influenciar os rumos futuros da NIN. Pretty Hate Machine saiu-se surpreendentemente bem nas lojas (em 1993, somava mais de duas milhões de cópias vendidas). Um momento de destaque foi a participação da banda na edição inaugural do Lollapalooza.

 

 

O último show do festival, em setembro de 1991, foi também o início do projeto que levaria a The Downward Spiral. Em 1992, Reznor concluiu Broken, EP com seis faixas lançado pelo recém-fundado selo Nothing, outro empreendimento de Reznor, vinculada à Interscope Recordings, um braço da Atlantic.

 

 

Após hesitar, Reznor instalou-se em Los Angeles. Alugou uma casa, comprou equipamentos e trabalhou por mais de um ano. Uma previsão inicial apontava o fim de 1993 como prazo para término do álbum, mas isso só ocorreu no final daquele ano.

 

 

Diligente e perfeccionista, Reznor novamente fez quase tudo. A produção foi dividida com Flood, que já contribuíra em algumas faixas de Pretty Hate Machine e de Burn. Houve várias colaborações, com destaque, pela sua regularidade e importância, para o baterista Chris Vrenna, parceiro desde a criação da NIN.

 

 

Embora não tenha sido concebido para ser acessível, The Downward Spiral teve muito impacto. Estreou na segunda posição na lista da Billboard. Voltou a subir nas paradas depois da “embarrada” apresentação da NIN no Woodstock de 1994. É considerado um dos principais álbuns daquela década e continua a merecer até hoje nossa atenção.

 

 

Auto-destruição

The Downward Spiral é orientado por um conceito, descrito em seu título: a espiral descendente de um personagem que se isola do mundo, que experimenta e questiona várias coisas (como religião, sexo, violência e drogas), que busca e perde o controle da vida. Tem como destino final o suicídio, ou sua tentativa.

 

 

O álbum, ao longo de suas 14 faixas, acompanha tal personagem. É nesse sentido que é conceitual, mais do que quando pensamos em uma sequência de eventos formando uma história.

 

 

Em parte, é autobiográfico, pois expõe e elabora os sentimentos de um Reznor inseguro e misantrópico. Segundo o próprio músico, no seu caso, a vida é que imitou a arte, pois ao final da turnê em 1996, ele precisou recorrer a ajuda para lidar com um problema crescente com álcool e outras drogas.

 

 

O clima do álbum incorpora algo do lugar no qual foi gravado: a casa onde ocorreram em 1969 os assassinatos de cinco pessoas, entre elas Sharon Tate, perpetrados pelo grupo liderado por Charles Manson. A porta principal da casa ainda guardava a inscrição “pig” e por isso Reznor batizou seu local de moradia e de trabalho como Le Pig Studios.

 

 

A referência a porcos aparece também no título de duas faixas de The Downward Spiral, em sentidos que não são os mesmos, ambos remetendo a temas recorrentes nas letras do álbum: relações de gênero e padrões de dominação-submissão.

 

 

Numa interpretação livre, “piggy”, nome de uma dessas faixas, remete às duas principais inspirações para o álbum: o personagem Pink que povoa The Wall (1979), da Pink Floyd; e, Ziggy, a criação de David Bowie, que mais tarde lançaria Low (1977), outra obra central para The Downward Spiral. Para a glória de Reznor, a NIN dividiria alguns palcos com Bowie em 1995.

 

 

Em seu livro sobre o álbum, Adam Steiner escreve que ele “funciona como uma peça unificada de música clássica: cada música é um movimento que revisita e reorienta outro aspecto do álbum, e os finais das faixas se alimentam das seguintes”. Há melodias, riffs e frases que se repetem ao longo de várias músicas.

 

 

A abertura é com “Mr. Self Destruct”, que se inicia com uma série de batidas em ritmo crescente. A base é eletrônica, mas passa longe da assepsia, sobretudo quando guitarras abrasivas ganham dominância. A barulheira é interrompida, brevemente e sem maiores avisos, por uma calmaria. Ao final, escutamos uma guitarra ensandecida, contribuição de Andrew Belew da King Crimson.

 

 

Durante a calmaria produzida por teclados, vozes não deixam de nos perturbar. Ponto recorrente nas letras de The Downward Spiral, não parece haver uma única voz ou pessoa. O personagem do álbum é habitado por outros, ao mesmo tempo em que interage com (outras?) pessoas. Essa polifonia é reforçada pelos diversos registros vocais de Reznor e por recursos de mixagem (a cargo de Alan Moulder) que distribuem diferencialmente as vozes nas músicas.

 

 

A letra de “Mr. Self Destruct” nos confunde: “Eu levo você onde você quiser ir”, “Eu darei para você tudo que você precisa saber”, mas também “Eu arrasto você para baixo, eu uso você”.

 

 

Belew volta a aparecer em “The Becoming”, faixa que nos faz pensar no que a Radiohead comporia no futuro, se cortejasse a brutalidade. Outra banda britânica, Depeche Mode, pode ser lembrada em “Ruiner”, que incorpora um solo de guitarra inspirado em David Gilmour.

 

 

“I Do Not Want This”, que tem a colaboração de Steve Perkins (ex-Jane’s Addiction) na percussão, é um bom exemplo da engenhosidade de Reznor, usando camada sobre camada de sons para construir uma música perturbadora. Outro exemplo é “Eraser”, com sua bateria e sua guitarra que não soariam estranhas em uma banda pós-punk.

 

 

Mais diretas e esporrentas são a frenética “March of the Pigs”, também com breves calmarias, “Heresy”, com seu bate estaca constante, e a curta “Big Man with a Gun”, cuja letra parodia o gangsta rap.

 

 

Elementos industriais, um gênero ao qual a NIN esteve associada em suas origens, aparecem em várias faixas por meio de samples. Procure por eles em “Heresy”, “Ruiner”, “Eraser” e, especialmente, em “The Becoming” (com sua temática ciborgue) e em “Reptile” (na qual metais batem em nossos ouvidos).

 

 

“Piggy” e “Closer” são mais lentas, têm até um groove. Possíveis influências de Prince, que consta dos agradecimentos no encarte do primeiro álbum. Em “Closer”, que se tornou a faixa mais conhecida do álbum, um mesmo ritmo vai sendo trabalhado com vários elementos, incluindo o piano que marca o final da música.

 

 

A letra dialoga com alguém, pedindo ajuda para alcançar a perfeição, ajuda para se tornar outra pessoa. O refrão termina com “você me deixa mais perto de deus”. A temática religiosa não está apenas em algumas músicas, mas expressa toda a jornada do personagem criado por Reznor, que ele descreve como alguém “em busca de salvação”.

 

 

Mas essa salvação é impossível. Pois o Deus de “Heresy”, esse que habitaria o céu cristão, está morto. E o deus de “Closer”, que se confunde com o sexo, esse só pode dar prazer e frustração.

 

 

Caminhos bem tortos levam o personagem ao final da saga, com “Hurt”, que encerra o álbum. Bela em sua simplicidade, essa música começa serena, com a voz cansada de Reznor e um ruído ao fundo, e cresce para culminar no refrão, sem perder sua calma. Uma guitarra urra e ouvimos ainda mais um minuto de teclados.

 

 

A letra é tarja preta. Corresponderia a um momento de reflexão após o suicídio (consumado?) narrado em “The Downward Spiral”. Nesta, vozes desesperadas quebram uma levada de violões, acompanhadas por guitarras pesadas. “Closer” ganhou nova vida na versão de Johnny Cash, que considerou sua letra como a mais perfeita canção antidrogas já feita.

 

 

“A Warm Place” é uma faixa bastante inspirada pela ambient music composta por Brian Eno. Eno foi um colaborador de Bowie, com quem Reznor entrou em sintonia para a criação de texturas sônicas. Antecipa produções que vão povoar álbuns posteriores da NIN, especialmente a série Ghosts, e o trabalho de Reznor para trilhas sonoras.

 

 

Aliás, o cinema foi uma referência potente para The Downward Spiral. Vários samples vêm de filmes, como um trecho de O Massacre da Serra Elétrica (1974) usado em “Reptile”. Outras referências remetem às obras de David Cronenberg, John Carpenter e David Lynch.

 

 

Reznor desenvolveria uma colaboração mais estreita com David Fincher, que lhe renderia em um Oscar pela trilha de A Rede Social (2011). Em 1995, os créditos iniciais de Se7en foram embalados por uma versão de “Closer”, por sua vez faixa que ganhou um clipe rebuscado que se tornou parte do acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York.

 

 

Ainda em 1994, Reznor concebeu a trilha para Assassinos por Natureza, de Oliver Stone. Duas faixas da NIN foram usadas, incluindo “A Warm Place”. A banda gravou “Burn” especialmente para essa trilha, assim como uma versão de “Dead Souls” (Joy Division) para a trilha de O Corvo.

 

 

“A Warm Place”, faixa instrumental, dialoga diretamente com a arte abstrata de Russel Mills, cujas obras ilustram os elementos gráficos de The Downward Spiral. Para a capa, o artista concebeu algo que em sua beleza revelasse a crueza visceral das feridas. Algo só parcialmente captado pela foto do quadro elaborado com gesso, tintas, metais enferrujados, insetos, sangue, cera, vernizes e curativos cirúrgicos. Um bom resumo do que é feito o álbum.

 

 

Rock em criação eletrônica

 

The Downward Spiral esteve envolvido em muitas polêmicas. O clipe de “Closer”, cheio de referências, foi censurado e só uma outra versão foi veiculada. Era um novo capítulo da política das imagens da NIN, que já havia rendido o curta Broken, espécie de colagem dos vídeos chocantes de faixas do EP de 1992.

 

 

Músicas da banda foram associadas com assassinatos em série, em especial aquele que ocorreu em uma escola em Columbine (1999). Foram também utilizadas em sessões de tortura sonora em prisões estadunidenses mundo afora.

 

 

Artisticamente, a NIN ficou vinculadas a imagens de violência, inclusive auto infligida. Palahniuk comenta que escreveu seu Clube da Luta (1996), depois vertido para as telas por Fincher, ao som de The Downward Spiral.

 

 

Nesse veio, despontaram bandas afinadas com uma estética freak. Duas mais diretamente ligadas a Reznor são a Filter, formada por um ex-guitarrista da NIN, e a Marilyn Manson, contratada pela Nothing Records. Seus álbuns de estreia datam, respectivamente, de 1995 e 1994.

 

 

Mais amplamente, a NIN alimentou e se beneficiou do que já foi chamado de “mercado da dor, angústia e raiva”, que juntou várias bandas e obras no difuso rastro sonoro do grunge ou no cultivo de letras confessionais.

 

 

O livro de Adam Steiner discute essas várias polêmicas, apontando argumentos que permitem entender como terapia o que alguns denunciam como veneno. A raiva poderia ser uma forma de elaborar sentimentos destrutivos. As músicas da NIN abririam um debate sobre saúde mental masculina. As letras processariam e expressariam dilemas sociais.

 

 

Da minha parte, escolho comentar sobre outro tema que atravessa The Downward Spiral: a relação entre rock e eletrônica. Essa é uma questão que está na própria origem da NIN quando lançou Pretty Hate Machine, com um pé bem fincado no tecnopop dos anos 80, mas foi o sucesso do segundo álbum que a trouxe para o primeiro plano.

 

 

Em seu livro sobre a história da música pop, Kelefa Sanneh comenta que a música eletrônica que já alvoroçara a cena britânica desde o final dos anos 80 só iria estourar nos Estados Unidos graças ao álbum do NIN de 1994: “Reznor usava diversas das mesmas máquinas que os produtores da dance music, mas para criar canções, não faixas”.

 

 

Reznor e seus colaboradores podem ser colocados ao lado de uma tendência que faz a música depender de computadores para ser criada e executada. Nos iludimos com muito do que escutamos em The Downward Spiral, pois instrumentos como guitarra e baixo têm seus sons processados por esses computadores. O uso de bateria acústica é raro e várias vezes recorre a colagens que geram loopings.

 

 

Esse lado eletrônico foi reforçado com o lançamento, em 1995, de um álbum de remixes intitulado Further Down the Spiral, que conta, entre outras, com contribuições da Coil e de Aphex Twin. Na mesma direção temos a versão de “Memorabilia” (Soft Cell), outtake das gravações de 1993.

 

 

Lembremos que o início dos anos 90, no caso dos EUA, celebra a crueza sonora, a ponto de uma banda como a Rage Against The Machine orgulhosamente proferir no encarte do seu álbum de estreia (1992): “nenhum sample, teclado ou sintetizador foi usado”.

 

 

A isso a NIN respondia adotando essas máquinas e recursos para criar um som que dialogava intensamente com o barulho da RATM e outras bandas. Um eletrônico que soava sujo, cru e brutal. A voz de Reznor em “Eraser” não poderia ser a de Kurt Cobain?

 

 

Além disso, a dependência das máquinas não afastava elementos de acaso. Um exemplo disso é a bateria (aliás, acústica) que escutamos no final de “Piggy”, gravada de improviso por Reznor.

 

 

Com referências dos anos 70 (Bowie e Pink Floyd) – e outras do pós punk/new wave, do pop e do industrial – o álbum da NIN não se nutre de nenhuma nostalgia. Investe na criação de algo inaudito, um eletrônico que dialoga com o rock, casando melodia e desconstrução.

 

 

E como o resultado na imensa maioria das vezes são canções, isso se complementa com o fato da NIN se tornar uma banda “de verdade” quando entrava nos palcos. A turnê de The Downward Spiral começou em março de 1994 e prosseguiu até setembro de 1996, com Chris Vrenna, James Woolley, Robin Finck e Danny Lohner. Longe da frieza de um conjunto de máquinas, o quinteto excedia em energia.

 

 

Essa performance é captada no vídeo de Peter Christopherson para “March of the Pigs”. Note-se que o som que acompanha as imagens é o que a banda produz durante as filmagens. A agressividade abunda, inclusive contra as máquinas.

 

 

Em 2004, uma versão comemorativa de The Downward Spiral foi lançada, acrescentando demos, remixes e B-sides às faixas originais. A capa estampa uma fotografia atualizada da obra de Mills, então modificada pela decomposição de seus ingredientes orgânicos. Vinte anos depois, o Trent Reznor que gravou aquele álbum tornou-se outra pessoa e suas músicas continuam envelhecendo bem.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *