Quando Aquaman me Lembrou de Roy Orbison

 

Via eu “Aquaman”, o filme, dia desses. Sim, aquele com o Jason Momoa no papel do príncipe bastardo de Atlântida, a versão cinematográfica bem recente. O longa se encaixa naquela categoria “é bom, mas é ruim” mas acaba se tornando diversão honesta e infantilizada, ideal para quando a gente quer dar um tempo das agruras do mundo neoliberal de hoje e deseja, nem que seja por duas horas, se alienar de tudo e todos. Mas, vocês sabem, música é uma obsessão. Como disse meu amigo Ricardo Benevides, eu sou uma “pessoa inquieta” quando o assunto é esse e qual não foi minha surpresa quando, numa sequência bucólica, em que Aquaman contempla Mera, a princesa atlante que será sua futura esposa, interpretada pela atriz Amber Heard, numa aldeia da Sicília, vêm, lá do fundo, os acordes de uma canção muito familiar, a qual não ouvia há tempos. A melodia vem aos poucos, percussão e guitarras dão o tom – conduzidas por The Edge, do U2 – e, voilá: aquela voz entra. Não, não é a “vox” do Bono, o que seria presumível. É o drama em pessoa, o amor decantado e derramado. Roy Orbison. A canção? “She’s A Mystery To Me”, do álbum “Mystery Girl”.

 

É mais um dos sensacionais discos lançados em 1989 que completam 30 anos agora. Que ano incrível para a música pop, meus caros e caras. Por isso que tenho escrito tantos textos celebrando os aniversários destes álbuns, porque alguns são excelentes e não foram afetados pelo tempo. Este, no entanto, não é o caso de “Mystery Girl”. Ele parece feito para o seu tempo e nada mais. Paradoxalmente, é uma de suas grandes virtudes, uma vez que este mundo cruel e desumano não seria capaz de comportar a presença de um romântico incurável como Roy Orbison. E, triste fato: Roy faleceu dias antes de ‘Mystery Girl” ir para as lojas, em fevereiro de 1989. Este disco não é uma obra isolada, é uma espécie de – para usar um termo caro aos maratonistas de séries – um “spin-off” da produção de Jeff Lynne no período.

 

Lynne, mente iluminada por trás da – sem trocadilhos – Electric Light Orchestra, tornou-se um dos grandes produtores do rock da segunda metade dos anos 1980. Após dar um tempo em sua banda, Jeff começou a trabalhar com dois artistas: Roy Orbison e George Harrison, apenas. Este último vinha gravando as canções de seu disco “Cloud Nine” e chamara Jeff para a produção. E Roy, imerso em profundo ostracismo desde a década de 1970, experimentava interessante reinteresse por parte do público após sua clássica canção “In Dreams” ter sido incluída numa sequência decisiva de “Blue Velvet”, filme dirigido por David Lynch, lançado em 1987. Sendo assim, Lynne estava ao lado de dois grandes gigantes, prestes a passar por reinvenções em suas carreiras. Mas o que Lynne não poderia esperar é que, em pouco tempo – meses – ele faria parte de um supergrupo estelar, no qual, além de Roy e George, também estariam Bob Dylan e Tom Petty. Era o Travelling Wilburys.

 

A chegada dos Wilburys colocou a produção do disco de Roy em stand by. O próprio supergrupo serviu para apresentar uma reinvenção na carreira de todos os participantes, menos de Dylan, que nunca parou e que sempre teve na mutação sonora um de seus grandes trunfos. Mas todo o resto vinha com uma sonoridade nova, totalmente tributária ao que Jeff Lynne vinha produzindo e testando. Após os Wilburys lançarem o primeiro disco, “Volume 1”, a produção do disco de Roy foi retomada em meio a várias celebrações de seu retorno. Outro disco, “A Black And White Night”, dedicada à sua obra, foi lançado, primeiramente como um especial na TV, posteriormente VHS. Dele participaram Tom Petty and The Heartbreakers, Bruce Springsteen, Elvis Costello, além de Lynne, George e um monte de velhos mavericks revisitados. Isso recolocou Roy nas paradas de sucesso e no circuito de shows. Tristemente, em 6 de dezembro de 1988, ele morreu por conta de um ataque cardíaco, mas não sem antes terminar sua participação em “Mystery Girl”.

 

O disco surgiu em fevereiro de 1989 como um tributo póstumo não intencional, mas que deu a Orbison uma fama similar a dos seus melhores tempos – início dos anos 1960, quando inspirava os Beatles e lançava cavalos de batalha atemporais como “Oh, Pretty Woman”. O disco, com participação dos Wilburys (menos de Dylan), além de Elvis Costello e de Bono Vox/The Edge, foi direto para as paradas de sucesso, através do sensacional single “You Got It”. Talvez tenha sido um dos maiores hits daquele final de década. Em sua esteira vieram, além de “She’s A Mystery To Me” – lembrada na singela sequência de “Aquaman” – a ótima “All I Can Do Is Dream You”, que parecia vinda de uma máquina do tempo. Na verdade, todas as dez canções do disco são irretocáveis, polidas e muito bem conduzidas pelo padrão que Lynne impôs no estúdio.

 

Hoje, trinta anos depois, eu torço pra que algum moleque fã de Aquaman tenha sentido curiosidade de acionar o seu Shazam no celular, descobrir que aquela canção chama-se “She’s A Mystery To Me” e a ouça num streaming qualquer desses disponíveis. Se uma pequena fração do imenso público do filme tiver feito isso, a música pop mais bela, bem feita e afetuosa já terá ganho muito.

 

E Jason Momoa, mulheres, desculpem, mas ele é a cara do saudoso Doutor Sócrates, aquele, do Corínthians.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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