“Dois”, da Legião Urbana, faz aniversário

 

 

O segundo trabalho de Legião Urbana é um dos maiores vendedores da história do Rock brasileiro. Rompeu barreiras, estabeleceu parâmetros e, mais do que tudo: era algo absolutamente único naquele meio de 1986. Eu lembro porque tinha entre 15 e 16 anos, aquela idade em que muitas coisas sérias acontecem e outras, até então importantíssimas, deixam de ter lugar nas nossas vidas. Resumindo: é quando mudamos e tal fato pede uma trilha sonora, uma projeção para além das nossas enevoadas trilhas mentais, algo que possa nos lembrar de quem somos para que, no futuro, possamos saber quem éramos em meio a tudo isso.

 

São doze canções em 47 minutos e marcam uma mudança muito profunda no que entendíamos como Rock feito no Brasil naquela época. A própria Legião Urbana chegara às paradas de sucesso com seu primeiro álbum, lançado pouco mais de um ano antes mas com canções voltadas para uma espécie de consciência coletiva, algo como palavras de ordem sendo “cantadas” para uma multidão de um comício, algo assim. Geração Coca-Cola, Petróleo do Futuro, Soldados, eram muitas as canções com teor político, compondo com outras mais pessoais – Ainda É Cedo, Será, Por Enquanto – um painel que se propunha a tomar várias vozes como suas e levá-las adiante. Muito do que se entende como “o messianismo” da Legião só seria panfletarismo (bastante eficaz, por sinal) se Renato Russo não decidisse mudar o foco de suas canções para o segundo álbum. Saem completamente as palavras de ordem e o horizonte musical é composto apenas de canções sentimentais, falando diretamente para o coração do ouvinte, exceção apenas por Fábrica, que chega lá no final do álbum.

 

Era praticamente impossível não ser afetado pela chegada de Dois às prateleiras das lojas. Com um instrumental muito mais suave e próximo do que faziam bandas do Rock inglês, principalmente The Smiths, o “novo da Legião” foi totalmente absorvido pelas rádios. Antes disso, porém, as canções precisavam fazer sua parte. A primeira a fazer sucesso, Tempo Perdido, tem uma das letras mais belas já escritas por algum compositor brasileiro em qualquer época, sem exagero. É uma reflexão sobre a angústia de crescer, sobre deixar para trás a segurança em troca de uma liberdade que queremos mas que nunca se mostra tão perfeita e sedutora quando parecia ou deveria ser. Em meio à narrativa, um amor perdido no meio disso tudo. Era impossível não se identificar. Outras lindas criações de Russo, Dado, Bonfá e Renato Rocha foram aparecendo nas rádios: a emoção lúdica de Quase Sem Querer, a insinuante e bandeirosa Daniel Na Cova Dos Leões, a indescritível Eduardo e Mônica, cheia de violões Folk, narrativa ficcional e versos maravilhosos, ilustrando uma história de amor temporona entre dois opostos que se atraem. Ainda havia a greve geral de Fábrica, ingênua mas necessária e com o belo verso de onde vem a indiferença temperada a ferro e fogo?”, o mistério de Plantas Embaixo do Aquário, Metrópole e Música Urbana 2*…

 

As grandes canções de Dois, na modesta opinião de um espectador de primeira hora de seu poder são: Andrea Doria, Acrilic On Canvas e, acima de tudo, Índios. Com o tempo este pódio foi mudando e várias músicas ocuparam seu topo. Acrilic… sempre esteve entre as três, propulsionada por uma levada sinuosa e repetitiva de baixo, que serve de terreno para efeitos de guitarra e letra impressionantes de Russo usando pintura como metáfora do amor, num exercício de desconstrução do próprio corpo da pessoa amada, algo muito acima de qualquer letra feita na época. Andrea Doria, com nome de navio italiano inafundável mas naufragado, usado como alegoria para o amor supostamente indestrutível que falha em algum lugar do caminho, é bela, triste e contemplativa. E Índios, com um instrumental simples e genial ao mesmo tempo, a bordo de uma progressão de teclados subindo de tom enquanto a letra – diz a lenda, feita na hora da gravação da canção – literal, mistura sentimento, desamor, esperança e a América Ibérica do século XVI como uma grande figura de linguagem, é outro assombro.

 

Com o tempo ficou bacana falar mal da Legião Urbana, taxá-la de pouco criativa, como um trampolim para Russo, um cara de classe média e complicado como pessoa e persona, tornar-se um messias, ou mesmo ignorar seus feitos ao longo de uma carreira praticamente irrepreensível. Quem estava vivo e lúcido naqueles anos 1980 sabe o quão importantes estas canções poderiam se tornar. A variação intimista conseguida pela banda em Dois inaugurou um filão vitorioso que manteve-se ativo nos discos por vir, principalmente em As Quatro Estações (1989) e V (1991), álbuns extremamente pessoais e capazes de identificação imediata com o ouvinte.

Ouça, caso se dispuser a procurar este clássico do Rock brasileiro de todas as décadas, no volume máximo.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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