Dissecando “Discovery”, do Daft Punk

 

 

Daft Punk foi um duo francês de música eletrônica formado em 1993 por Guy- Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter cujo fim chegou neste ano. Expandindo o conceito do Kraftwerk de músicos que incorporaram máquinas, representando a crescente mecanização da música, Homem-Christo e Bangalter assumiram para si a aparência robótica explicitando assim que sua música era essencialmente eletrônica.

 

Enquanto os alemães eram humanos que se fingiam androides que queriam se passar por humanos, os franceses de fato personificaram máquinas tanto dentro quanto fora da música. Não sabíamos nada sobre suas vidas particulares muito menos sobre os rostos embaixo do capacete. Eram robôs, cuja função era basicamente produzir música e que após cumprido o seu propósito, ao ver da dupla, seu único fim só poderia ser a autodestruição (funcionando mais ou menos como os androides de “Blade Runner”).

 

Após a breve apresentação, com o já referido anúncio do fim do duo, e para os que conhecem o conjunto apenas pelo excelente Random Access Memories (2013), não há ocasião melhor para resgatar um dos álbuns de grande sucesso da dupla e que completa 20 anos de lançamento em 2021.

 

Lançado em 12 de março de 2001 pela Virgin/EMI, Discovery é o segundo álbum do conjunto e representa uma ruptura com a sonoridade do anterior, Homework (1997) – baseado no som underground de casas noturnas francesas de house music –, em que a música funcionava em prol das batidas, acrescentando certa “organicidade” ao som eletrônico da dupla, com melodias mais trabalhadas e novas texturas experimentadas, além da adição de instrumentos como guitarra e baixo elétrico, e fortemente inspirado pela disco music, rhythm & blues e no som dos anos 70 e 80. Embora tenha causado certa estranheza em alguns pela guinada sonora um pouco menos mecanizada, é necessário lembrar que, como a própria dupla lembraria anos depois na canção e álbum homônimos, eles eram ‘Human After All’ portanto, nada mais justo do que recuperar esse aspecto humano outrora perdido.

 

O álbum inicia com a explosiva “One More Time”. Utilizando de um sample não creditado, cujo uso foi negado por Thomas Bangalter (veja aqui ) da canção “More Spell On You” do cantor Eddie Johns e contando com a voz do saudoso cantor norte americano Romanthony (1967 – 2013) comprimida e fortemente alterada pelo auto tune, a faixa é um passeio pela disco music da década de 70. Com sintetizadores efusivos e brilhantes que logo saltam aos ouvidos, a faixa é uma clara homenagem ao supracitado gênero com toque de contemporaneidade da house music, em que há uma intercalação entre momentos de euforia com outros de quietude, emulando perfeitamente uma pista de dança. “One More Time” foi um sucesso absoluto em seu lançamento tornando-se um grande sucesso da dupla e não surpreende que até hoje ela ainda seja lembrada.

 

A instrumental “Aerodynamic”, contendo um sample não creditado de “Il Macquillage Lady” do conjunto Sister Sledge, é fortemente inclinada para o rock e representa perfeitamente a fusão de gêneros que o álbum propõe a realizar. Com uma introdução bem próxima ao funk, altamente dançante como o gênero suplica, a canção rapidamente prossegue para um solo que lembra ligeiramente o heavy metal da década de 80, fundindo ambas as inspirações um uma coisa só, ao final convergindo em uma sonoridade eletrônica. A despeito do som de um sino que quebra o clima em alguns momentos, a canção é totalmente enérgica. Segundo Homem-Christo, o álbum “é uma mistura entre passado e futuro, talvez o presente”, e certamente esta faixa é a que melhor captura esta definição.

 

‘Digital Love’, trabalhada em cima do sample de “I Love You More” do músico norte americano George Duke, é a primeira balada do álbum e também com inspiração no rock, além do rhythm & blues. Tratando sobre um amor não consumado, a faixa conta com os vocais alterados da dupla e funciona como uma ótima quebra de ritmo entre duas canções efusivas.

 

“Harder, Better, Faster, Stronger”, um dos grandes hits do álbum, é uma faixa que começa no house e rapidamente transiciona para o hip hop. Sua batida (junto com a melodia) provém do sample de “Cola Bottle Baby” do músico norte americano Edwin Birdsong e que, associada à temática lírica, remete aos sons do maquinário da linha de montagem de uma indústria, buscando emular essa mecanização de um processo e a consequente perda da humanização do trabalhador. Como o título sugere, a letra retrata uma imposição superior para que se faça algo “mais duro, melhor, mais rápido e mais forte”, sendo uma perfeita representação das ordens (não raro acompanhadas de abusos) laborais cotidianas.

 

 

“Crescendolls”, baseada no sample de “Can You Imagine” do grupo Little Anthony & The Imperials, é uma mistura de funk com hip hop. Não é um grande destaque, mas contribui para manter o clima festivo e setentista do álbum.

 

 

Já em compensação, “Nightvision” acaba sendo uma agradável surpresa. Mesmo destoando um pouco do que foi apresentado até então, a canção é sublime e remete à música ambiente devido aos seus sintetizadores etéreos.

 

Contendo um sample de “Who’s Been Sleeping In My Bed” do célebre Barry Manilow, “Superheroes” é uma canção extravagante (no bom sentido) e uma fusão notável do pop dos anos 70 com a música techno da década de 90, em que os sintetizadores ao final da canção compõem um momento de euforia e de pulsão crescente com um ritmo acelerado perdurando por toda a faixa.

 

Com um sample levemente alterado de “Break Down For Love” do grupo Tavares (aqueles que regravaram “More Than A Woman” dos Bee Gees para a trilha de “Os Embalos de Sábado à Noite”, lembra?), “High Life”, é provavelmente o exemplar mais explícito de referência à disco music ao mesmo tempo em que mantém a veia da house music.

 

É a partir de “Something About Us” que o álbum começa a perder um pouco da sua força, como se estivesse indicando o final de uma festa (parecido com o que o U2 fizera quatro anos antes em “Pop”). A canção, totalmente inclinada ao rhythm, & blues é uma balada sutil (candidata a melhor do disco), marcante e envolvente em que é possível sentir o romantismo através de sua melodia e da interpretação da dupla, como se mostrassem para o ouvinte que robôs também podem amar.

 

A despeito da guitarra próxima ao funk, “Voyager” é essencialmente uma canção de house music e talvez a mais “pura” do gênero dentro do repertório. Combinando entre momentos dançantes e leves pausas de introspecção, é uma faixa excelente e que mesmo não mantendo a euforia das primeiras, ainda assim é capaz de conquistar o ouvinte.

 

 

Com uma sutil melancolia, “Veridis Quo” é uma canção instrumental que, fugindo um pouco das influências norte americanas, remete à eurodisco sem perder a conexão com o presente. Dosando texturas, apesar da batida mais contida, a faixa mantém um ritmo pulsante e contagioso.

 

“Short Circuit” repete o padrão de “Harder, Better, Faster, Stronger” em transmitir sensações através do ritmo. Com teclados intrincados e sons metálicos que indicam um equipamento defeituoso, a faixa emula exatamente o que indica o título, um curto circuito. Com influência latente do hip hop e um quê de Kraftwerk da época de “Electric Café” (1986), a canção lembra em muito os primórdios da dupla e poderia estar perfeitamente em Homework, por exemplo.

 

Totalmente calcada no rhythm & blues e mais um pouco do groove do funk, “Face to Face” é construída a partir de uma reunião de samples (veja aqui ) 1e conta com vocais do DJ norte americano Todd Edwards. Sendo uma das faixas mais “abrasivas” do álbum, embora não tenha o mesmo impacto das canções, possui um riff pegajoso e um ritmo altamente dançante.

 

E finalizando o álbum “Too Long”, composta a partir da junção de dois samples (veja aqui) apresenta vocais de Romanthony – dessa vez sem compressões – e é totalmente puxada para o rhythm & blues e hip hop. Mesmo sendo agitada, a faixa (acertadamente posicionada ao final) está longe de ser realmente empolgante ou memorável e encerra “Discovery” de maneira um pouco morna, embora consiga captar bem a essência dos gêneros supracitados.

 

Com “Discovery” o Daft Punk alcançou patamares mundiais de sucesso e aceitação de público e crítica, tanto que 20 anos após seu lançamento continua sendo lembrado e elogiado mesmo por quem não é muito afeito à house music.

 

Foi através deste disco também que foi pavimentado o caminho para que diversos outros artistas no decorrer da década prestassem tributo à disco music, (alguns com resultados muito bons, outros nem tão satisfatórios, porém de maneira não tão orgânica quanto o duo francês realizou); além disso, “Discovery” não reverberou apenas no trabalho alheio, mas é possível notar ecos do álbum na própria discografia da dupla, sendo o aclamado “Random Access Memories” um filho direto do lançamento de 2001.

 

Por fim, resta reconhecer que Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter deixam um legado de criatividade e inventividade na música. Mesmo que cada álbum da dupla tenha sua singularidade e importância, provavelmente “Discovery” é o que mais se sobressai assim como o atestado de um trabalho consistente e que continua tão influente quanto à época em que foi lançado.

 

A título de curiosidade, em 2003 foi lançado “Interstella 5555: The 5tory of the 5ecret 5tar 5ystem”. Longa metragem produzido pelo famoso estúdio japonês Toei Animation em parceria com a dupla e dirigido por Kazuhisa Takenouchi, o filme é inspirado nos animes da década de 70 e serve como complemento para o álbum, cujas faixas são perfeitamente ilustradas pela película e da qual foram extraídos trechos que formariam os famosos videoclipes altamente veiculados à época.

 

Gabriel Martins

Colecionador de CD’s desde os 14 anos, descobri o amor à música com o Tears For Fears e a paixão pela brasilidade com Marcos Valle. Apesar de ser formado em Direito, minha vocação se encontra no jornalismo musical.

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