Deep Purple segue vivo e operante
Deep Purple – = 1
52′, 13 faixas
(EarMusic)
Em alguns filmes de ação, num dado momento, no qual os mocinhos estão a ponto de descobrir a trama que irá destruir o mundo ou algo no gênero, é feita a pergunta: “a quem interessa o caos criado?” ou “a quem interessa que os ataques terroristas aconteçam no lugar tal?”. Longe de ser um indicativo de alguma trama nefesta, esta pergunta me ocorreu quando ouvi este “= 1”: “a quem interessa um novo álbum do Deep Purple?”. Bem, a julgar pelo resultado das treze faixas, interessa, em primeiro lugar, à própria banda. Afinal de contas, já são quase sessenta anos de atividade em muitos momentos e formações diferentes, muitos deles passados criando discos importantíssimos e ajudando a pavimentar a estrada que daria no heavy metal e no hard rock. Mais que isso: o Deep Purple e o Led Zeppelin foram os sujeitos mais visados e visíveis de uma modernização na fusão do rock psicodélico com o blues e mostraram ser um modelo muito mais viável que, por exemplo, o Cream ou o Jimi Hendrix Experience. Souberam canalizar as influências em ligas sonoras eficazes e, no meio desse processo, conceberam álbuns decisivos. Se o Led Zeppelin foi mais regular e teve uma discografia bem mais curta, não dá pra deixar de lado um grupo de assinou obras como “Burn”, “Machine Head” ou “Come Taste The Band”. E, ao contrário da banda de Page, Plant, Bonham e Jones, o Purple, entre idas e vindas, permanece vivo e operante. É o maior ensinamento que tiramos da audição deste “= 1”, uma banda se divertindo e fazendo o que gosta. Se você gosta, ótimo, do contrário, dane-se.
Seria surpreendente achar que uma instituição como o Deep Purple se preocuparia, nesta altura do campeonato, em agradar neófitos ou pesquisar novidades. Pelo contrário, é dessas instituições que os fãs vão buscar quando não querem se sentir ameaçados por tantos derretimentos e convenções e certezas, algo típico dessa vida pós-pós-pós contemporânea. E, bem, aqui ele irá encontrar uma sonoridade que poderia ser perpetrada na virada dos anos 1970/80, na virada dos anos 1980/90 ou ao longo de toda a década de 1970. É algo cristalizado na convenção do rock pesado, o aceno ao blues elétrico, os vocais ginásticos e flexíveis – na medida do possível – e, no caso do Purple, os fraseados de órgão, a guitarra ágil e a pegada de banda de bar meio inchada e malandrona, as tais “raposas felpudas” forjadas na vida doida e imprevisível do rock como costumava ser. Esse conjunto de identidades ainda funciona e, a meu ver, pega muito melhor do que em gente como Guns’n’Roses, apenas para citar uma banda que evidentemente bebeu na fonte do Purple e cresceu até a fama mundial fazendo uma sonoridade relativamente próxima. É bem verdade que não dá pra comparar um monstro como Ian Gillan que, mesmo cansado e afônico (nem é o caso aqui) dá um pau em Axl Rose e nos seus compadres de geração.
Falando em monstros, além de Gillan, estão presentes outros dois dinossauros do perío cretáceo do rock: o bateria Ian Paice, ainda capaz de suas conduções nervosas e encrespadas e o baixista Roger Glover, verdadeiro homem de segurança nas estruturas sonoras do grupo. Completam o time o organista Don Airey, presente no grupo desde 2002 e o guitarrista Simon McBride, que veio a bordo em 2022, substituindo Steve Morse, a princípio, de forma temporária e depois sendo efetivado no grupo e dando continuidade a uma tradição que tem, além de Morse, Tommy Bolin e Richie Blackmore. A julgar pelo que faz aqui, McBride é bastante competente e contribuiu com algumas composições, mostrando que há democracia no Purple para dar ouvidos e espaço para os integrantes mais jovens. Mas tanto McBride quanto Airey estão aqui para seguir um modelo estético bem definido há muito tempo – a avaliação a que são submetidos e expostos não inclui tanta criatividade ou novidade e tudo está ok para eles. E para os fãs.
“= 1” tem todos os elementos para agradar ao fã exigente da banda, desde que ele esteja ciente que a ideia aqui é dar continuidade a um formato, revivendo-o em novas canções que não irão soar diferente de nada que já tenha sido ouvido. Nesta seara, há boas surpresas no caminho. A produção/participação de Bob Ezrin garante uma sonoridade totalmente adequada ao que há de melhor disponível nos estúdios. Tudo soa forte, confiável, pesado e harmonioso, com destaque para a voz de Gillan, que está em boa fase. Dentre as treze competentes faixas, eu destaco duas, que está acima da média e mostram que há muito o que ouvir num grupo veterano como o Purple. Em “If I Were You”, o arranjo é mais lento, a faixa tem espaço para ótimo groove blueseiro de baixo e bateria, com boas intervenções de órgão e competentes solos da guitarra de McBride, muito competente. E tem a incandescente “Lazy Sod”, blues rock malandro de beira de estrada, com ótimas sacadas do arranjo que leva o resultado para o que ainda há de melhor na interseção do r&b clássico e do blues elétrico.
Deep Purple em 2024 é como a definição historiográfica de tradição: é a manifestação do passado no presente. Funciona, tem relevância e um dos maiores repertórios disponíveis entre os sobreviventes do rock e estará diante dos brasileiros nos próximos em menos de um mês, com shows em São Paulo (13 de setembro) e no Palco Sunset do Rock In Rio (15 de setembro).
Ouça primeiro: “Lazy Sod” e “If I Were You”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.