Álbum duplo mostra Sakamoto em sua dança final

 

 

 

 

Ryuichi Sakamoto – Opus
96′, 20 faixas
(Milan)

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

 

 

Ryuichi Sakamoto morreu no dia 17 de março de 2023, vítima de câncer. Ele conviveu com a doença e conseguiu manter-se produtivo por algum tempo, mas, ela avançou ferozmente nos últimos meses. Sendo assim, em algum ponto do mês de setembro de 2022, cerca de seis meses antes de morrer, ele entrou no Estúdio 509, da Tokyo Broadcasting System (TBS), na capital japonesa, para uma série de performances ao piano, que foram filmadas por seu filho, Neo Sora. O resultado dessas sessões se transformou no filme “Opus” e a música produzida nelas ganha o formato de álbum duplo. O conceito parece simples, mas representa muito para um artista obcecado pela perfeição: realizar interpretações de várias composições de uma carreira de mais de cinco décadas, que oscilou entre a música pop, a eletrônica, incursões na música brasileira e folclórica de vários lugares, sem mencionar a constante parceria de Sakamoto com as trilhas sonoras para o cinema. Em “Opus” ele passeia por vinte temas, sendo três deles inéditos, visando cobrir sua trajetória da melhor forma possível. Como tinha energia para algumas interpretações por vez, precisou de várias idas e vindas ao estúdio e o resultado é marcado por um binômio contraditório de força e vulnerabilidade.

 

É bom que se diga, Sakamoto foi um dos grandes nomes da música do século 20 e, mesmo tão diverso em abordagens estéticas, conseguiu manter uma marca identitária notável nos primeiros acordes. Tal impressão se confirma nesses arranjos mínimos de piano nos quais ele veste suas composições de origens tão diversas. Algumas separadas por décadas, lugares, abordagens, todas soam inegavelmente pertencentes à mente criativa de um artista que, por mais diverso, era … mortal. A impressão do fim próximo assombra essas versões e as reveste de uma aura transcendental. Certamente o artista sabia que não teria muito tempo ou energia para um álbum de despedida ou algo no gênero e talvez nem quisesse fazer tal movimento. Preferiu a solidão de um estúdio deserto, apenas com a presença de uma equipe mínima de gravação para a música e o filho com sua câmera e luzes. Aliás, foi desejo do mestre a iluminação ser ajustada de acordo com avançar das horas, provendo luz da manhã, do dia e do entardecer, amplificando a ideia de avanço do tempo.

 

Este é um trabalho que ultrapassa as fronteiras da música como algo a ser comercializado ou vendido. Ainda que seja assim que o acesso a ele seja possível, há algo que não cabe na lógica das trocas mercantis mais básicas. A recompensa por acessar essas canções, compreendidas em pouco mais de 90 minutos, é a de estar na presença do artista, de uma forma que parece muito mais íntima e intensa do que em circunstâncias normais. A seleção do repertório certamente foi feita com a ideia de percorrer o máximo possível de tempo e espaço na carreira de Sakamoto e foi reservado espaço até para seu tempo na sensacional Yellow Magic Orchesta, representado aqui pela inclusão de “Tong Poo”, originalmente gravada no álbum “Public Pressure”. O que antes era uma profusão de elementos sintetizados, foi despido até os ossos pelo novo arranjo ao piano. As inéditas soam como homenagens a amigos queridos. “For Jóhann” é dedicada ao compositor sueco Jóhann Johannson, morto em 2018 e “BB” tem como inspiração o cineasta italiano Bernardo Bertolucci, com quem Sakamoto trabalhou em “O Último Imperador” (1987), “O Céu Que Nos Protege” (1990) e “O Pequeno Buda” (1995).

 

Os temas destes dois filmes estão presentes na seleção de “Opus”. “The Last Emperor” e “The Sheltering Sky” ganham força pelo arranjo minimalista, sendo que esta abordagem permite notar a influência de Tom Jobim na primeira, com a qual Sakamoto venceu o Oscar em 1987. O maestro brasileiro também é ouvido fortemente nas estruturas repetidoras do maior sucesso de Sakamoto, a linda “Merry Christmas, Mr. Lawrence”, do filme de mesmo nome, no qual ele também atuou, ao lado de David Bowie, em 1983. É notável como temas de natureza eletropop (“Bibo No Aozora”, 1997) ou totalmente eletrônica (“Andata”, de 2017) se entrelacem com tanta naturalidade na abordagem essencialmente pianística de “Opus”. As influências dos compositores impressionistas, sobretudo de Erik Satie, estão presentes, tanto na forma, quanto na concepção sonora dos temas, dando espaço e tempo suficiente para o silêncio entre os acordes ser um elemento decisivo para o resultado final.

 

“Opus” é uma obra essencial e com força suficiente para cumprir uma função terrível: ser o último movimento de um gênio em sua forma “humana”. Seus sons e circunstâncias conseguem manter essa humanidade o tempo necessário, dando a transcendência necessária ao fim desses noventa e poucos minutos. Ouvi-la é uma experiência forte e impressionante, digna de seu criador. Só nos resta agradecer pela oportunidade.

 

 

Ouça primeiro: o álbum todo.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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