David Gilmour lança seu melhor disco solo

 

 

 

 

David Gilmour – Luck and Strange
62′, 11 faixas
(Sony)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

Descontando o infeliz single “pacifista” que teve o nome “Pink Floyd” assinado em 2022, não ouvíamos nada de David Gilmour desde 2015. E, antes disso, desde 2006. O velho David não aparece com frequência, prefere ficar entocado em sua enorme propriedade em Wisborough Green, em West Sussex, sul da Inglaterra. Ao longo de sua carreira, ele só gravou cinco álbuns solo, contando com este maravilhoso “Luck and Strange”. Isso dá conta do tamanho do legado do Pink Floyd para a música pop planetária ao longo de cinco, seis décadas. Pois, tirando um timbre familiar de guitarra aqui, uma citação discreta ali, há pouquíssimo de Floyd nas dez (onze, com a faixa-bônus “Barn Jam”, gravada em 2008, na qual o finado tecladista da banda, Richard Wright, participa) faixas de “Luck and Strange” e isso é ótimo. Tal sensação aumenta mais se soubermos que o produtor do álbum, Charlie Andrew, tinha pouca ou nenhuma ideia do passado do grupo, das tretas entre seus integrantes, da richa entre Gilmour e Roger Waters, baixista e autoproclamado lider do Floyd, tampouco da porradaria midiática que irrompeu junto com a guerra na Ucrânia, com direito a xingamentos proferidos a Water pela esposa de Gilmour, Polly Samsom via rede social. Nada, nada disso está nestas faixas, ainda bem. E o que temos aqui? Descubramos.

 

David Gilmour está com 78 anos. Sua performance como guitarrista e vocalista sempre foi algo bastante forte. Sua presença, seja solando, seja cantando num palco sempre pareceu imune à ação do tempo mas, bem, não é mais. Gilmour já não é capaz de soltar seu registro rouco e implacável como antes e ele recebeu tal informação como resignação e honestidade. Sendo assim, não há nenhum mecanismo para disfarçar a voz que já falha e ele até topa dividir vocais com outras pessoas, no caso, com uma pessoa muito especial: sua filha, Romany, que aparece triunfalmente em alguns momentos especiais do álbum. Aliás, este é um trabalho de família. Polly é a letrista de David desde 1994, quando gravou “The Division Bell”, o último álbum de canções inéditas do Pink Floyd. Suas reflexões em “Luck and Strange” são baseadas na passagem do tempo e em como a permanência no mundo por tanto tempo é motivo para celebrar e aproveitar, sem que se faça isso de forma alucinada. O título do disco tem a ver com isso: como é motivo de sorte sobreviver tantos anos e, ao mesmo tempo, como é estranho constatar que muita gente, muitas coisas já se foram. E que o mundo, ora bolas, o mundo mudou demais.

 

E dessas mudanças vem um desejo de se manter relevante musicalmente. A chegada de Charlie Andrew para a produção, junto com alguns músicos que pouco ou nunca tinham tocado alguma canção do Pink Floyd no passado oxigenou a fórmula blues-espacial-reflexiva de Gilmour e o resultado esbanja elegância e sinceridade. Não que não haja raposas felpudas por aqui: além do próprio David, temos a bateria multivencedora de Steve Gadd e o baixão sensacional de Guy Pratt. Os dois aparecem na maioria das faixas do álbum, conferindo uma base sólida e inquebrantável para que o velho David plane sobre o poente a bordo de solos de guitarra que estão entre os mais pessoais e distinguíveis do rock que ainda é possível em 2024. Basta uma nota para que saibamos que David virá ladeira abaixo, equilibrando força, harmonia e beleza, qualidades que foram temperadas perfeitamente pelo senso de tempo transcorrido que “Luck and Strange” evoca.

 

Neste clima de “velha novidade” há espaço até para uma cover. “Between Two Points”, uma das faixas mais belas de “Luck and Strange”, cantada por Romany com participação de David, é, na verdade, da dupla britânica Montgolfier Brothers. Foi gravada por eles em seu álbum de estreia, “Seventeen Stars”, lançado em 1999. Não deixa de ser interessante, sobretudo pela escolha de Romany, que empresta à letra de amor e vulnerabilidade um tom a mais de veracidade. Além dela, temos o aceno folk de “The Piper’s Call” e a coesão impressionante da faixa-título, na qual brilha a bateria de Gadd, enquanto a voz de Gilmour surge ainda forte, mas bem mais amparada nos vocais de apoio do que em vezes anteriores. “A Single Spark” surge como uma das ótimas canções do álbum – com intervenções eletrônicas discretíssimas e melodia otimista, ela emoldura os nossos pensamentos sobre David e em como deve ser complexo dizer – e ele tem dito – que este é seu último álbum. Este senso de finitude cabe também na sublime “Sings”, na qual a letra pede para “parar o relógio e dar um pouco mais de tempo e ficar dentro de um casulo”. O arranjo é arrepiante e vai pontuando a bela melodia até depois que a música acaba. Em “Scattered”, ao longo de mais de sete minutos, David embarca num épico tipicamente pós-Floyd, com acenos – especialmente de teclados – à métrica e mecânica da velha banda. Há graça na auto-irônica “Yes, I Have Ghosts” (outra em que Romany participa). Em “Dark and Velvet Night”, alguns tons mais sombrios são escolhidos, mas não muda a sensação de paz e harmonia que a constatação da passagem do tempo parece causar em David.

 

E é assim, com esse vai e vem de emoções, pessoas, família e tudo mais, que o “velho” guitarrista do Pink Floyd chega a seu melhor álbum solo. Se contabilizarmos as produções com os companheiros de ex-banda, “Luck and Strange” vai cutucar lá longe, na barra das calças de obras como “Wish You Were Here”, “Animals” e … “Dark Side Of The Moon”. Acredite, não é exagero. Basta dar tempo a essas canções e isso é tudo o que elas pedem. Bravo.

 

 

Ouça primeiro: “Sings”, “Between Two Points”, “Luck and Strange”, “The Piper’s Call”, “Scattered”, “A Single Spark”, “Dark and Velvet Night”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *