Mercury Rev: A volta dos pós-progressivos inclassificáveis
Mercury Rev – Born Horses
40′, 8 faixas
(Bella Union)
Mercury Rev é uma banda inclassificável. Começou, lá no início dos anos 1990, como uma formação que ciscava no terreiro da psicodelia, dentro do prisma do rock alternativo de guitarras ianque, num balaio em que ainda habitavam grupos como Modest Mouse e Flaming Lips. Tudo mudou quando lançaram o quarto álbum, “Deserter’s Song”, em 1998, e enveredaram por um caminho majestoso em que praticavam uma sonoridade muito pessoal, que tinha algumas tinturas progressivas em tons de cinza chumbo e penumbra. A partir daí e do álbum seguinte, outra maravilha chamada “All Is Dream”, de 2001, o Mercury Rev se consolidou como uma banda fiel a este propósito misterioso de se apropriar de tiques e taques grandiloquentes – teclados, metais, cordas, melodias epifânicas – e aplicá-los a canções com estrutura rock-alternativa, evoluindo o formato e incorporando mais e mais referências, aplicadas com mais ou menos intensidade nos trabalhos subsequentes, a saber, “The Secret Migration” (2005), “Snowflake Midnight” (2008) e “The Light In You” (2015). Com este cartel de serviços prestados, o grupo de Buffalo, Nova York, se deu ao luxo de lançar um álbum lindo e surpreendente em 2019, “Bobbie Gentry’s The Delta Sweetie Revisited”, que, como o título já dizia, era uma homenagem à cantora de country soul há muito reclusa, com participações de várias vocalistas, de Norah Jones a Hope Sandoval, passando por Beth Orton e Lucinda Williams.
“Born Horses” é, portanto, um retorno à sonoridade praticada pelo Mercury Rev durante a maior parte de sua existência, essa tal abordagem progressiva-indie-guitar-alternativa difícil de nomear. Ainda que conte com bastante gente familiar – o produtor David Fridman pilota o estúdio e os membros fundadores Jonathan Donahue e Grasshoper lideram o trabalho – “Born Horses” apresenta particularidades inéditas no cânon da banda. É o primeiro trabalho a contar com a tecladista austríaca Marion Genser e o segundo do qual Jesse Chandler participa. E talvez seja a primeira vez em que o grupo cisca no terreiro do jazz, que é incorporado à liga sonora habitual de forma bem natural e, digamos, conceitual, muito mais para Chet Baker do que para, digamos, Miles Davis, ainda que “Sketches Of Spain” seja assumido como inspiração para o que há por aqui. E mais: Donahue, que tem uma forma bastante peculiar de cantar, com um registro afinadíssimo, passa a maior parte do tempo recitando/declamando as letras. Esse movimento, ainda que cause certo estranhamento, especialmente para um vocalista dessa qualidade, acaba jogando a favor da estrutura das canções, ainda mais próximas do terreno progressivo, mas não no sentido Yes-ELP-Genesis do termo. O que o Mercury Rev oferece aqui está muito próximo de sonoridades que gente como o tecladista grego Vangelis fez em alguns trabalhos de sua carreira, especialmente no mais conhecido deles, a trilha sonora de “Blade Runner”.
O próprio Grasshoper declarou no release do disco a importância que este álbum tem para ele e para Donahue e o quanto a audição dele, quando a dupla se conheceu, há mais de trinta anos, foi importante. Sendo assim, o Mercury Rev enfileira um arsenal sonoro que abarca guitarras, teclados, metais, cordas, sopros, baterias, além de samples, dentro de um amálgama que agrada imediatamente aos ouvidos acostumados com o que a banda sempre fez. Donahue lembra que o título do álbum veio de uma passagem da faixa número seis, na qual ele descreve um sonho no qual vê que todos nós nascemos cavalos e ficamos eternamente à espera de asas. A psicodelia desta passagem permeia a maior parte do álbum, mas é possível dizer que a maior marca de “Born Horses” é a consciência da passagem do tempo e como ela modifica tudo – pessoas, lugares, sentimentos – e a perplexidade de não podermos fazer nada para evitar que ela nos atinja. Esse fato está mais evidente na linda “Everything I Tought I Had Lost”, na qual Donahue se dá conta de que pode acessar tudo o que achava perdido para sempre por meio de lembranças e que isso, de certa forma, é o bastante. É uma espécie de disco sobre o passado, só que anti-nostalgia. Funciona.
“Mood Swings”, a faixa de abertura, é um misto de metais que parecem pairar sobre uma pradaria de sentimentos e sonoridades, na qual Donahue fala sobre as tais mudanças de estados de espírito, que vão dar espaço para que as três canções seguintes, “Ancient Love”, Your Hammer, My Heart” e “Patterns”, existem num mesmo feixe de consciência e similaridade. A primeira é totalmente “vangeliana”, com guitarras e teclados dialogando enigmaticamente, falando sobre um “amor mais velho que o espaço e o tempo, desde quando o fogo foi descoberto”. A segunda é mais sonhadora e fala sobre a vulnerabilidade diante do amor, novamente em meio a teclados que vêm e vão, num efeito muito bonito e “Patterns”, lançada como single”, é uma lindeza pianística cheia de surpresas de efeitos, novamente muito próxima das sonoridades de Vangelis em “Blade Runner”. Em “A Bird With No Adress”, o tom canto-falado adquire características mais melódicas e vai evoluiundo num clima que vai criando e atendendo expectativas. O fim com “There’s Always Been A Bird In Me” coroa todo o espaço aberto desde a primeira faixa.
“Born Horses” é um disco grandiloquente, ainda que não queira ser. Tem timbres, sonoridades, detalhes e sacadas esperando por serem descobertos e apreciados. Parece ter sido meticulosamente pensado e tramado ao longo de muito tempo, mas, paradoxalmente, soa fresco, espontâneo e muito, muito bonito.
Ouça primeiro: “Mood Swings”, “A Bird With No Address”, “Your Hammer, My Heart”, “Patterns”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.